Revisitando Castelo Branco

22/02/2015

A retorta

Capela da vila velha por cima da retorta 

No São Bernardino,

o verão começa a aparecer junto com as cerejas. Quando pintam é o sinal de que a primavera está para sair é o verão a dar sinais. Os trigais ficam pálidos e o verde vivo, vai dando lugar ao dourado, nos tons das espigas a amadurecer e da erva a secar nos montes. Os campos enchem-se, com os sons das cotovias, e dos “chincha-la-raiz” enamorados, ocupados em se acasalar, ou em fazer os ninho. O cuco chegou cheio de vontade, este ano, e anda pelos ares, atendo á vida alheia, para ver se arruma casa e lugar para por os ovos e deixar os filhos para criar com as mães enganadas.

Por todo o lado,

uma sinfonia de sons e de aromas , cigarras, cucos, gaios, rolas, melros, pardais, bandos de pintassilgos. Voam e cantam felizes por cima de quem passa e deixam os campos repletos de uma trilha sonora encantadora e perfeita: uma "sinfonia de pássaros". As perdizes e os perdigotos espalham-se pelos caminhos, e confundem quem passa como se fossem pedras a correr em fila.

As aulas na escola,

depois da festa, começam a ficar pesadas e as horas intermináveis. Mas apesar disso e para compensar, os dias já são mais longos, e sobra mais tempo para os jogos na praça. Ao fim do dia ouve-se os gritos dos rapazes a correr á volta das casas a brincar ao tiro-liro ou a voltar de jogar á bola nos lameiros do chafariz, ou das eiras.

 

Naquela época

eu guardava vacas. Sim vacas. Eram três, a Mimosa, a Castanheira e a Picolina. Outro dia falo da origem dos nomes, isto porque é muito interessante saber desta origem, tem seus motivos, e podem crer vale bem a pena escrever uma crónica para lhes contar.

Guardar vacas...

Esta era minha parcela de responsabilidade nas lidas familiares de sustento e de trabalho. “Trabalho de menino é pouco mas quem o perde é louco”. Realmente o que eu fazia era pouco, era mesmo, alem de que, eu ia contrariado e com má vontade atrás das vacas, sempre resmungando uma ladainha de palavrões e de nomes que não posso contar aqui. Não que eu não gostasse do trabalho, sempre gostei de ser útil e produtivo, mas com oito anos eu acreditava que meu tempo seria mais bem empregue indo para a retorta e passando lá o dia com meus amigos a nadar de papo para o ar o verão inteiro. Digam-me lá, bem no fundo e com sinceridade, quando tinham oito anos, por acaso pensavam diferente? Duvido, eu e as vacas eramos inimigos elas destruiam lazer e minhas férias e passar os dias atrás delas nao era lá muito interessante.

 

Verão

Sim é nesta época é que a retorta toma o lugar principal nas vidas dos rapazes da aldeia. Não que ela ficasse esquecida durante o resto do ano. Mas, com o verão e o calor a chegar todos da aldeia pensam ir para lá e não se fala de outra coisa. Será que este ano está funda? Dúvida cruel. Aquela trovoada de final de maio, afundou-a mais ainda... Já medimos a fundura e este ano cobre os mais velhos...

 

Todos os anos

as previsões eram as mesmas, fazíamos planos e promessas para aproveitar o verão da melhor maneira possível. Era lá que aprendíamos a nadar entre outras coisas. Algumas vezes tinha quem nos ensinasse outras eramos arremessados, pelos mais velhos, para o meio do poço. Sim os "grandes" ficaram irritados porque turbávamos a água de lodo com nossos nados de aprendizes na borda do poço e soltavamos o barro do fundo turvando a água. Com raiva e para nos fazerem desistir, pegavam-nos de dupla e jogavam-nos no meio do fecho para intimidar. Quase sempre era uma convivência pacifica, agora eu penso, mas será que era mesmo?

Foi um lugar fantástico, que ficou recheado de lembranças e aventuras na memória dos que tivemos a sorte de lá ter passado e vivido bons momentos. Para conhecer este lugar é preciso viajar no tempo e voltar uns 30 anos. Voltar aquelas tardes de verão, ás primeiras braçadas, aos mergulhos do fecho, ás histórias que lá contavamos e as aventuras e descobertas que lá vivemos.

Este lugar, ainda existe, mas por artes do destino, e das mudanças que o clima do planeta tem atravessado, não tem mais o encanto, nem a magia que tinha nesses tempos da minha infância e da dos meus contemporâneos. Tudo mudou.

Daqueles tempos restou apenas a ribeira. Continua sozinha correndo por lá. Vai no mesmo leito, não mudou de lugar, porem foi totalmente esquecida pelos garotos e rapazes da aldeia. Ao me lembrar dela penso que deve ficar a chorar pelos tempos que passaram, como uma senhora de idade, sentada ao sol, a fazer a renda, e a reclamar dos filhos e dos netos ausentes, que não aparecem mais, nem para passar as férias do verão. Nisto a aldeia se espelha e se retrata também. Só ficaram as avós. Os netos e filhos partiram sem volta.

 

Deste tempo apenas as lembranças.

Éramos ás dezenas, um pior que o outro. Andávamos em bando e incomodávamos, a serenidade das tardes de verão. Imitávamos os pardais a correr pelas ruas no fim do dia, chilreando felizes como se fossemos todos um só, a voar de meda em meda, nas eiras, de papo cheio, a preparar o corpo para o frio e a fome do inverno. Pintávamos e bordávamos o sete o maior número de vezes possível.

Fiquei surpreso ao falar com meus sobrinhos. Eles são uns quinze anos mais novos do que eu e ainda vivem na aldeia, mas não viveram essa paixão que fazia nossos verões ficarem maravilhosos. Não a conheceram nem tiveram por ela a mesma paixão que me alimentou dos 06 aos 20 anos. Mas eles são de outra geração, outras eras.

Mas ao lembrar desse lugar e de tudo o que lá vivemos, comecei a falar para dentro de mim mesmo para outro tempo. Pus-me a falar com o Luis Pardal de oito anos. Contei o que iria acontecer, precisavam ver a cara que ele fez ao contar de como as coisas estão hoje. Encarrancou o rosto e arremedou com cara de incrédulo, falou que isso era impossível de acontecer, pôs a língua de fora e disse que eu era um grande aldrabão, e que estava prá li a contar lorotas, um borra botas. Antes fosse Luis Pardal, antes fosse. Mas é a mais pura e certa das verdades, infelizmente.

Apesar disso a retorta continua com seus encantos e é um lugar que vale a pena visitar no fim da tarde descendo o caminho da vila velha, então chegando perto da capela, setar-se no muro e ficar ali a olhar o poço e reviver os tempos.

 

Afinal ela é a retorta.

2 comentários:

  1. Ora viva Artur
    Foi aí, nessa retorta, que eu aprendi a nadar. Já lá vão mais de 30 anos. Ai que saudades de jogar à bola e depois mergulhar na água, inicialmente límpida mas depois, com a azelhice natural de quem ainda não nadava, cheia de lodo.
    Bolas, porque será que esse tempo teve de acabar...
    Agora que encontrei esta "passagem" para os tempos de infância, continuarei por aqui a recordá-los, com saudade.
    Abraços
    Alfredo Solteiro (Zé)

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  2. Olá Zé,

    Seja bem vindo meu amigo. Quantos anos!

    Tem coisas que só a net proporciona como reencontrar amigos de há muitos anos.

    Quem bom que este blog te fez revisitar Castelo Branco e permitiu rever momentos e amigos.

    Um forte abraço

    Luis Pardal

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