Revisitando Castelo Branco

22/10/2009

Memórias do passado, ou lenda da fonte

Autor: Arlindo Parreira 

Ás vezes ao olhar para o passado parece-nos que tudo sempre foi do jeito que é agora. Somos levados a esquecer que nos últimos anos as coisas mudaram muito. A geração atual desconhece os trabalhos, canseiras, e o valor que as coisas tinham para nós em outros tempos. Coisas simples como abrir a torneia de casa e sair água, era há cinquenta anos, algo impensável pelo menos para quem vivia nos anos 60, em Castelo Branco. Concordo que eram outros tempos, tempos difíceis, mas cheios de detalhes e emoções e que tinham o seu que de romantismo.

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Por exemplo, a fonte velha do vale para quem viveu nesta época, é uma marca disso.

E como tudo na vida ela também trás boas e algumas más recordações. Nem tudo são flores, as rosas também tem espinhos não é mesmo?

DSC01396Mas é sobre ela que lhes quero falar a respeito. A água de lá era e ainda é a água melhor para se beber da aldeia, mesmo depois de chegar a água encanada. Enganados pela proximidade do ribeiro, podemos pensar que ela  nasce dele, mas não é assim. A DSC01399nascente sai de um veio que vem dos lados da escola. A água brota filtrada do meio das fragas, límpida e cristalina. Melhor que a da solheira, e que a do carvalhal em sabor e gosto, digo até que é a melhor água da terra.

Quando chegavam as colheitas, tinha-se que levantar cedo para fugir do calor. Vínhamos a casa almoçar e tirar a sesta. Hora do corpo descansar um pouco enquanto diminuía a força do sol do meio dia. Era nessa época que a água fresca da fonte ficava mais  apreciada e valorizada, todos lá iam para apanhar da água refrescante e saborosa que matava a sede e renovava as forças.

No verão a rapaziada fazia limpeza. Tirava a água com um  motor, lavava as paredes com  uma escova dura, varria todo o barro e lodo do fundo. Tudo limpo, muito bem limpo, para se poder beber. Um autêntico ritual levado a sério e que acontecia todos os anos com o maior empenho, entusiasmo, e digo também, exibição.

Foi o ponto de encontro mais requisitado e frequentado pela mocidade da aldeia. Acreditem, ali perto da ponte, era o melhor lugar para se estar em certas horas do dia. Muitos casamentos começaram por ali. Sim, tem história essa nossa fonte e o vale DSC01400também. Sei que já começaram a lembrar... Sim, isso mesmo, para os rapazes e raparigas solteiros, era ali que tinham a oportunidade de estar por perto para trocar uns olhares, uma graça, um sorriso, um encanto e porque não, para começarem um grande amor. Enquanto esperávamos por “elas” fazíamos apostas. Autentico torneio disputado por todos os rapazes.

Como sabem dentro da fonte tem uma pintura com um santo desenhado. Este era o desafio. Quem fosse capaz de beijar o santo da fonte ganhava o direito de encher o cântaro da primeira rapariga e de ajudar a colocá-lo ao quadril dela. Era uma oportunidade única, lembro bem como ficava bonito de ver... As moças com a coluna inclinada para o lado para manter o cântaro DSC01404direito, e os rapazes felizes pela dupla vitória, de vencerem os outros e de poderem ajudar a moça a erguer o cântaro. Eram momentos muito especiais, de pequenas subtilezas, olhares, emoções. Tão simples para os dias de hoje, mas com tanto sentido para aqueles dias.

Não pensem que era fácil ganhar o desafio. O grau de dificuldade e de risco era grande e só os que tinham maior habilidade venciam. Era preciso muito treino e DSC01401coordenação motora. O santo fica na parede do fundo da fonte do lado oposto á porta de entrada. Ladeando o teto tem uma alça. Era por ali que se tinha que chegar ao santo. O corpo inteiro suspenso e fixo pela força de pés e mãos contra as paredes laterais da fonte, virados de barriga para baixo movendo as duas mãos e os dois pés em sincronia até chegar ao fundo. Chegando lá tinha que se soltar uma das mãos, para conseguir torcer o pescoço e a cabeça, e dar o beijo no santo. Sim era difícil mesmo! Até se conseguir dar o primeiro beijo no santo e ganhar a oportunidade de por o cântaro na cintura das moças, eram muitos tombos na água. Mas, a recompensa valia qualquer sacrifício e treino, Castelo Branco teve sempre as raparigas mais bonitas.

Mas eu falei que tinha más recordações também. A fonte não tinha nenhuma proteção era muito perigosa. A entrada ficava completamente aberta e teve vários casos de pessoas que caíram lá dentro, das que eu me recordo a minha cunhada Maria Elisa foi uma.

Das histórias mais dramáticas que lá aconteceram e que na ocasião provocou maior comoção a todos da aldeia foi a de um menino de cinco anos que lá caiu e se afogou. Vou lhes contar como foi. Sabem que em nossa aldeia tínhamos o costume do toque das trindades. O toque dos sinos era o sinal para os mais novos voltarem. As brincadeiras perto do fim do dia eram, quase sempre, estrategicamente em lugares perto de casa. Assim ao primeiro sinal a garotada saia a correr para chegar logo perto dos pais e pedir a benção. As mães, com os filhos á volta da mesa, davam graças pela ceia posta.

Naquele dia foi assim também. O sino tocou as trindades, a algazarra das crianças e das brincadeiras acabou aos poucos. A aldeia recolhia ao silencio da noite e do aconchego no lar.

A mãe esperou o filho e ao ver que não chegava para a benção, começou a se desesperar. Chamou os vizinhos. Tocaram o sino a rebate e o povo todo veio para acudir. Começaram a procurar e nada de encontrarem o menino. Lampiões na mão, as almas em alvoroço, todos aflitos e angustiados na procura pelas ruas e cantos da aldeia, a chamar o nome do rapaz, mas nada. Na noite tensa só se ouve o murmúrio das vozes aflitas e os gritos de uma mãe desesperada, com o pressentimento de que algo terrível pudesse ter acontecido.

A certa altura a mãe gritou: - Está na fonte do vale. Corremos todos para lá. O Belmiro Cordeiro mais rápido foi direto ao forno do Dr. Virgilio e saiu de lá com o ranhadouro do forno para ajudar a procurar na fonte. Começou a procurar o fundo. A luz dos lampiões era pouca e deixava tudo mais e tenso, as chamas a balançar mostravam rostos nervosos e angustiados. De repente sente que tocou algo diferente do chão duro e grita: Está aqui! Os momentos seguintes foram indescritíveis, choro, comoção geral e uma tristeza imensa no coração de todos os presentes. O menino era filho da Sra. Inácia e do Senhor José Maria do Correio. Chamavam-no assim porque era ele que ia á estação de Bruçó buscar as cartas e o correio da aldeia. Depois disso imigraram há muitos anos para Lisboa.

cantaro de Castelo Branco MogadouroApesar de bem conservada e restaurada a fonte ficou esquecida por todos da aldeia.

Os rapazes e as raparigas já lá não vão agora, nem sabem mais como se encaixa um cântaro á cintura e que graça isso tem.

Mas a culpa é dos cântaros quero crer.  Eram de barro quebravam fácil.

Sinal dos tempos, iriam todos!

Ai que vontade de uma jarra daquela água...

Que sede que deu!!!

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