Revisitando Castelo Branco

20/03/2012

O mistério dos carros no adro

Autor: Arlindo Parreira
Caros albicastrenses,
Na ardua, porem instigante, tarefa de resgatar as memórias dos tempos de juventude e do meu mandato regedoriano veio-me a lembrança esta passagem, que quero compartilhar com os mais novos. Um facto que aconteceu há muitos anos mas que é de grande importância para demonstrar a força e a valentia da nossa juventude de outras epocas.
Estavamos no fim de setembro.
Era sábado, e as vindimas ainda não tinham começado. Faltava o que fazer no fim do verão e as noites pachorrentas deixavam a malta impaciente e aborrecida. Naquela noite como em tantas outras iguais, para matar o tempo, organizamos um campeonato a jogar os matraquilhos entre as equipas do vale e das eiras, na taberna do nosso amigo e saudoso Cândido Pombo.
O jogo estava animado, os das eiras perdiam por cinco a dois para a equipa do vale. Foram golos marcados com muita classe e profissionalismo. Grandes craques, coisa nunca vista nem pelo Cristiano Ronaldo nem pelo Messi. Grande campeonato! No intervalo dos jogos, mais uma rodada paga pelos que perdiam.
- Que regalo, beber a borla, ainda mais com o gostinho da vitória. - Sabe sempre bem, não sabe?
Porem a paz reinou por pouco tempo naquela noite. Sempre há-de aparecer uma alma inquieta para apoquentar a dos outros e botar tudo a perder. Diz-me com quem andas que eu te direi quem tu és… Anda com os bons e serás um deles anda com os maus e serás pior do que que eles… Bons conselhos que da minha parte nunca foram seguidos mas que recomendo aos meus leitores mais jovens.
Ainda saboreavamos a rodada quando apareceram por lá uns rapazes cheios de entusiasmo que logo ao entrar, depois de baterem a continencia com todo o respeito que a guarda exigia, disseram para os Generais:
-Temos aqui um belo de um pirú pronto para um fadinho.
- Bô! Bôooo....
Há que desconfiar... Tanto entusiamos deixou a elite das tropas em alerta.
- Bô! Bôooo....
Nossos chefes eram experientes. Franziram  as sobrancelhas imediatamente. Porque a estes que tinham entrado esbaforidos, não havia que dar muita fé. Eram ainda garotos, uns novatos, ainda sem graduação nas tropas do gamanço, soldados razos que nem da recruta tinham passado. Em caso de dúvida toda a cautela era pouca.
- Bô!
Era pessoal sem experiencia nem autorização e que portanto já tinha violado as nossas regras.
- Bô! Mas... Mas nossos generais eram homens praticos e se o pensaram melhor o fizeram. Depois de rápida reunião de concilio chegaram a seguinte conclusão: -A cavalo dado não se olha o dente...
Melhor ainda: - Em piru gamado é que se enfia melhor o dente.
- Bô! Quem disse isso? O protocolo devia seguir a risca todas as exigencias de segurança e foi feito imediatamente o respectivo interrogatório.
- Então como foi que encontraram o piru? - De que galinheiro veio a ave? - Estava com alguma malina? - Foi envenenadao antes para facilitar o gamanço? - Era de boa procedencia?
Os rapazes repondiam a todas as perguntas mas a certa altura já cansados e ao verem tanta formalidade e burrocracia, cansados de responder a tanta pergunta, tiraram de dentro de um saco de batatas a ave. Espanto geral...
- Bô, bô, e bôooo...
Um rico piru, daqueles bem cevados, engordado com o melhor milho da paróquia e com ração reforçada de urtigas e farelos de trigo. Uma ave assim, nunca ninguem viu antes desse dia. Todos pasmaram diante de tanta fartura. Mais de meia arroba de xixa da melhor qualidade. Ai que ricas penas e que patas limpas e com um peito de respeito abaixo do cachaço longo e cabeçudo de goela vermelha e vibrante. Ficaram todos sem palavras
- B....
Verificamos então que o trabalho tinha sido feito com segurança total sem deixar rasto. Ponderamos e foi aceite pela maioria. Condecoramos os recrutas com a medalha da pena dourada. Comenda de altissima graduaçao e mérito que guardam até hoje tatuada no peito. Já viram algum com uma pena tatuada, viram? Não tenham dúvidas, foi um dos tais!
Examinamos o estado de saúde do pirú assim que me viu estremeceu, Já sabia o que o esperava, as vacinas estavam em dia...Nossa base do pirócas lá estava á espera para mais um grade fado. Foi um churrasco á grande pois éramos só uns 8 rapazes. Mas que belo piru. Tão empertigado. Um primor. Ave fina, tratada com esmero e que só comia e dumia para ficar com as carnes macias. O dono era um ricaço lavrador que tratava a ave com todo o capicho e com a maior modomia. Mas, enfim nao o chegou a provar. Que Deus lhe pague em dobro e bem haja, por nos permitir tão rico fado.
Piru temperado, brasas acesas para assar a carne... Nisto vimos que faltava vinho. Um dos recrutas foi logo a correr ao povo a buscar um almude de vinho. Em menos de uma hora voltou com a alforge da mula com dois garafões de cada lado. Noite a dentro, tudo correu as mil maravilhas na mais perfeita paz e harmonia e a festa durou até quase de madrugada.
Já de volta a casa ao chegar onde hoje é a casa do povo estava ali um carro carregado de lenha do Senhor Figueira. Mente vazia e todos com a barriga cheia e um tanto altos do vinho. Ao vermos o carro nem foi preciso falar alto o que todos tinhamos pensado ao mesmo tempo. O desafio era testar a força do vinho.
Começaram as sentenças e alguns já meios embriagados agarraram o cabeçalho outros as rodas e os demais a frente do carro e em minutos já estavamos com ele no adro da igreja. Gostamos do resultado da façanha. Uma obra digna de ser vista. O sucesso da arte empolgou a malta e resolvemos repetir. E venha mais do mesmo... Como o vinho em exagero só da para mal, começamos por apanhar os carros da aldeia e leva-los para o adro da igreja, um por um. Mais um, mais outro e no total lá estavam uns 10.
Todos foram levados e colocados de cabeçalho para cima apontando as baterias para Mogadouro como em sinal de guerra. Ainda para arrematar a façanha um deles foi posto encima do reservatório da água da soalheira. Toda esta operação não durou muito tempo e quanto terminamos o dia já começava a raiar. Já era domingo e em poucas horas seria celebrada a missa dominical.
Tocaram para a missa. Mas naquele domingo o sacristão quase não acertava o repique dos sinos embasbacado com tal espetaculo logo ali debaixo do campanário. Tremia-lhe a mão de espanto e so com grande esforço conseguiu levar a batidas do sino até a entrada da missa. Consciente da pantominice nao avisou o pároco do arraial que montaram no adrio, nem na festa de São Bernardino se faziam andores tão valentes.
Os fieis aos poucos começavam a chegar para a missa e antes mesmo de entrar na igreja já se percignavam no adro ao ver a arrumação. Um falatório imenso cresceu em uma tremenda confusão. Os comentários, eram de todos os generos e tipos e na maioria não eram nada meigos.
Uns reclamavam, outros riam a bom rir mas o melhor de tudo, toda a aldeia veio ver o espectáculo. Nunca o senhor padre teve uma paroquia tão devota para a missa dominical até os fregueses das tabernas vieram na missa nesse domingo atraidos com a noticia que já correra solta as ruas do povo todo.
Para não ficarmos de fora, nós oite  tambem fomos á missa para pedir perdão a Deus e claro, como não podia deixar de ser, para ouvir os comentários. Não deu outra, logo apontaram para nós.
- Um bom trabalho sim senhor de qaul de vós quem foi da ideia?
Alguém dizia:
- Isto é obra do diabo só pode ser!
- Olha ali o meu carro!
- E aquele é o meu. pouca vergonha!
o outro dizia
- Se não fosse esta brincadeira nem vinhas a missa! Ao que respondiamos: Estas a falar por nada. Outros não concordavam mas na verdade todos riam a bom rir.
Até aqui tudo bem…
Mas a segunda noticia chegou junto com o espanto dos carros a que todos já se estavam a acostumar. Neste instante chegou a dona do piru.
Enfurecida gritava e espalhava alhos e bugalhos.
- Os bardinos que lhe tinham comido o peru. - Arda guarda… - Arda guarda… - Que bardinos… - Ai que bardinos. Roubaram o piru e ainda lhe foram por as penas na varanda, para lhe atiçarem os nervos.
- Que pouca verganha, onde já se viu isto…
- Mas não vai ficar assim.
- Fiquem tranquilos que nao vai. Já chamei a guarda!
- o piru vai ficar salgado, vai, vai.
Ainda naquele dia fomos chamados e levados o quartel da guarda Republicana de Mogadouro para interrogatório. O comandante do quartel, um Cabo, que na pratica era a autoridade máxima do concelho fez o interrogatorio e lavrou o auto da infração.
Diz ele ao nos ver: - Entra como te chamas?
- Arlindo, meu capitão falei em tom exagerado de respeito! 
Ele enforecido olhou para mim e disse: ]
- Pois muito bem... Tu já es como como familia estavas demorando pra cá voltar. Fez mil perguntas mas nada de encontrar fio a meada…
Proximo: Como te chamas? Fulano de tal.
E que trazes ai no saco?
Resposta pronta: É um pão.
Ao que o Cabo retrucou: Parece que vens com ideia de ficar... E a samarra quer dizer que estas com frio?
A resposta veio a calhar do nosso camarada: A capa e a merenda nunca pesam.
E o Cabo: Meu rapaz, com que então, um fadinho de peru? Soube bem, soube? Vai sair salgado ai se vai! Nem que tenha que o tirar do couro…
Muita pergunta, mas ninguém sabia de nada e todos tinham a mesma resposta: - Fui para a cama cedo. - Não sei de nada.
O Cabo vendo que não conseguia pegar os culpados pelo piru ao ver que não ia dar em nada mudou o interrogatorio para os carros:
Mudou de tom e de repente de maneira amigavel diz: - Foi uma brincadeira ninguém apresentou queixa podeis dizer a verdade qual foi o da ideia?
Mas a rapaziada que de tola nao tinha nada logo se apercebeu da tatica do GNR e respondiam:
- Fomos todos!
Nisto ao olhar para o mais novo, o cabo perguntou de rompante: Qual foi o carro que fez mais, barulho? Com pouca idade e ingeno logo o novato respondeu: Pois atão só podia ser o que estava mais carregado. O cabo já tinha a confissão. Foi por isto que nos pegaram e deram uma multa por andarmos fazer barulho pelas ruas fora de horas.
Do piru até hoje ninguém descobriu nada.
É no que dá trabalhar com pessoal sem treino nunca mais aceitamos convite de estranhos.
Mas os faditos continuaram… E continuam até aos dias de hoje!
 
Abraços do
Arlindo Parreira, o ultimo regedor de Castelo Branco.
Até a proxima!

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06/03/2012

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo...

 

Uma imagem vale por mil palavras!

Obrigado Sylvie pela partilha desta belissima fotografia.

 

Alto da solheira, foto de Sylvie Mendes Neto


“Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...
Nas cidades a vida é mais pequena
Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.
Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,
Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,
Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,
E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver.”

Fernando Pessoa  (Alberto Caeiro)