Revisitando Castelo Branco

20/05/2007

Meu lugar encantado

Levei um susto com os gritos dos melros a fugir das parreiras com o papo cheio de uvas e com o barulho do vôo a esbarrar nas folhas. Pensei ofegante e ainda assustado, faltam poucas horas para a viagem... Logo, logo, vou embora...
Estávamos terminando a vindima nas Figueirinhas e os últimos valados de parreiras já estavam quase vindimados.
Daqui a pouco, pensei, estaremos pisando as uvas e depois iremos a dormir... Estava muito ansioso a pensar na viagem e comecei a correr pelo valado como se apressando o fim da vindima, pudesse acabar logo o dia.
Jantamos. Depois do jantar, minha mãe foi fazer-me a mala: ceroulas, pijamas, camisas, cuecas, enfim, todo o rol de coisas que os padres tinham pedido. Minha madrinha tinha passado uns bons dias daquele verão costurando em ponto cruz com linha vermelha o numero 247 nas minhas roupas, peça por peça. Era preciso que tudo fosse numerado para não trocarem as roupas quando fossem mandadas para a lavanderia. Quando minha mãe se apercebeu da dificuldade do pedido que os padres fizeram, ficou desesperada. Felizmente minha madrinha apareceu como um anjo e com toda a paciência e capricho desenhou e bordou dezenas de vezes o numero em minhas roupas. Foram meias e calças, camisas lençóis toalhas, enfim todo o enxoval. Que trabalho, mas até hoje tenho gravada em minha mente a caligrafia daquelas três números e os vejo nítidos bordados por ela. Salvou minha mãe e lhe sou grato também por tanto carinho a penso, nesse numero, como um numero de sorte.
Eu estava mais eufórico ainda com a chegada da hora. Meu coração batia mais rápido e parecia querer pular-me do peito. Mal consegui ouvir os últimos conselhos da minha mãe: meu filho, dizia ela e repetia a cada ano! Vê se estudas e não reprovas de ano, troca sempre de roupa e não te esqueças de ser um bom seminarista e de ouvir os conselhos de teus superiores. Sim, mãe, respondia eu, sem ter escutado que ela de facto me havia dito.
Fomos dormir...
Enquanto esperava o sono, fiquei relembrando as artes e aventuras das férias. Eu tinha pintado e bordado, e estava cheio das novidades para contar, no dia seguinte, aos meus colegas de seminário, no comboio, durante a viagem para o Porto.
O sono veio...
Adormeci a pensar que era uma pena que ainda não havia castanhas e que neste ano não estaria para os magustos. Fiquei com o gosto das castanhas na boca. Adorava o ritual dos magustos: as pedradas nos castanheiros para tombar os ouriços, ou uma vara da azeitona para varejar e, em último caso, sobretudo quando era de impulso que resolvíamos fazer o magusto e não preparávamos nada, uns arremessos de algum galho no castanheiro faziam a festa. Comecei a ficar triste por não estar lá neste ano, mas logo voltei a pensar no assar das castanhas e a tristeza foi-se embora. Pensei na fogueira de giestas e fieitos, nas folhas ardendo em mil labaredas rodeando as castanhas, fazendo-as estourar. Nas brincadeiras, nos meus amigos... E nos bilhós! Depois que as castanhas ficavam prontas, a casca a soltar-se... Como são bons, e como sabem bem com uma água-ardente a regá-los... Não que eu já pudesse beber mas sempre dávamos um jeito de um de nós surripiar uma garrafita da adega dos pais para tomarmos um golinho no magusto.
Adormeci enfim e em paz.
Acordei com minha mãe a chamar-me baixinho e a dizer-me: acorda Luis, está na hora de irmos para a estrada para pegares a carreira; chegou a hora.
Levantei-me ainda zonzo, com os pensamentos e sentidos ainda adormecidos pela noite curta. Lavei o rosto e vesti a roupa aos trambulhões. Sonâmbulo e meio às pressas, comi as sopas de pão e leite que minha mãe fez. E saímos para a rua, andando rápido.
Toda a aldeia dormia. Nossos passos nos paralelos faziam eco nas paredes das casas da rua, ainda muda àquela hora. Os cães do gado do ti Chico Moleiro acordaram com o barulho e nos olharam com desdém e desconfiança enquanto passávamos, como se estivessem a pensar: ainda é cedo para ir para ao gado, a onde vão aqueles dois? Depois, nos olharam, bocejaram e voltaram a dormir.
Chegamos à estrada.
O sol nascente, que subia no céu, descia a ladeira das eiras até o carrascal, iluminando os telhados e as ruas uma por uma. Lá do alto, da estrada, dava para ver o fumo dos chupões a subir e a espreguiçar-se por cima dos telhados das casas. No ar, o perfume doce de giestas e estevas que as donas de casa queimavam nas lareiras enquanto acendiam o lume, lembrava o insenso da adoração ao menino Jesus.
Vindo de longe e se aproximando rápido, um estranho arranjo musical entreteve meus ouvidos, e comecei a acompanhar essa modinha estranha, criada pelo compasso das ferraduras de uma junta de mulas, o chiado do eixo de freixo gemendo, e a voz rouca dos aros de ferro das rodas do carro, rodando no alcatrão. Que moda estranha para aquela hora do dia! O barulho foi se aproximando e chegou perto de nós bem rápido.
- Lá te vais de novo, ó Luís, disse o ti Paulino de cima do carro, enquanto parava a junta bem à nossa frente, para nos cumprimentar.
-É verdade, lá se vai de novo, disse minha mãe com lágrimas nos olhos.
O ti Paulino saiu ás pressas e picou as mulas com o aguilhão, para deixar o lugar para a carreira que já fazia a curva da Casa Grande, chegando estrada acima.
Ainda disse na pressa: - Vou-me lá para a devesa; vai com Deus, ó Luis, e vê se te portas bem meu rapaz. E desejou-me boa viagem.
Minha mãe apertou-me ao peito enquanto o cobrador punha as malas no porão da carreira. Foi me cobrindo de beijos e rezando um rosário de conselhos e bênçãos.
- Porta-te bem!
- Que Nossa Senhora do Caminho te acompanhe!
- Que São Bernardino te faça um bom menino!
- Que sejas um bom aluno.
Mal deu tempo de ela terminar e já o cobrador me mandava subir apressado.
Cheguei finalmente ao seminário depois de quase um dia inteiro de viagem longa e cansativa. De carreira até ao Pocinho, depois de comboio até ao Porto e do Porto até Cernache do Bonjardim de novo de carreira. Já se tinham passado mais de 20 horas desde que saíra de Castelo Branco.

Ao chegar ao pátio na frente, um alvoroço se formou na saída da carreira e enquanto descarregavam as malas. Tiraram as malas de dentro da carreira e uma expectativa crescente de cada um para juntar as suas. Depois que que terminou a confusão da procura, fomos agrupados e seguimos em fila, dirigindo-se cada grupo à sua camarata. Éramos separados nas camaratas de acordo com o ano de estudos.
Era uma pequena multidão de adolescentes que mais parecia uma colônia de formigas que invadiam um novo formigueiro, ainda por explorar. Cada um ia carregando do jeito que podia as pesadas malas. Os corredores pareciam não ter fim e quando acabavam vinha mais um lance de escadas a piorar nosso desespero e nosso trabalho. Minha camarata era a última e ficava no terceiro andar. Como foi longa a subida, parecia que não tinha fim. Fiquei pensando na expressão “subiu ao céu em corpo e alma” e pensei que estávamos a subir para lá não só de corpo e alma, mas também com pesadas malas.
Finalmente cheguei.
A camarata era longa, com camas dispostas em duas filas e intercaladas por mesinhas de cabeceira. Dividindo a sala ao meio, uma fila de colunas em arco romano ia de ponta a ponta, dando a sensação de estarmos em um claustro. Era um corredor que de tão comprido parecia não ter fim e a perspectiva criava a ilusão de não caber ninguém nas ultimas camas, de tão pequenas que pareciam.
O padre fez-nos ficar em silêncio depois de nos ter dado as instruções adequadas àquele momento: cada um deveria tirar da mala as roupas de cama e o pijama, fazer a cama, vestir o pijama, escovar os dentes e em seguida guardar as malas debaixo da cama e dormir. Já eram duas da manhã.
Ficou no ar um silêncio reprimido, quebrado de vez enquanto pelos nossos murmúrios e cochichos, como se a longa viagem não tivesse permitido pôr todos os assuntos das férias em dia, e agora fosse ainda hora de continuar os que ficaram em aberto.
O padre passava com cara séria e sisuda nos mandando calar.
Logo no primeiro dia o apelidamos de Cylon por se parecer com um personagem da série de ficção cientifica “Galáctica”. A semelhança com o personagem era muito grande: cabeça em oval careca e com a expressão de supervisor dos robots Cylons. Não me lembro do autor do apelido mas passamos aquela meia hora de arrumação das malas fazendo sinal uns aos outros imitando os trejeitos dos cylons e dando risadas em silêncio.
O padre esperou que todos fossem para a cama. Apagou as luzes da camarata, e acendeu as luzes-piloto amarelas, que ficavam a noite inteira acesas. Desta maneira ficava mais fácil controlar o bando de pirralhos no escuro ou, para o caso de que algum de nós precisasse ir ao quarto de banho, não se esbarrar nas colunas ou nas camas dos outros.
No meio do escuro começou a confusão, risadas, tosses forçadas, conversas abafadas soando baixinho, parecendo o sibilar de mil abelhas num cântaro.
Ouvimos o aviso do padre, ríspido e cortante: é hora de dormir!
Na hora entendemos que o melhor a fazer era obedecer. Durante uns vinte minutos o padre ainda ficou andando pela camarata, indo e voltando. A presença dele e o som cadenciado dos passos na madeira do assoalho nos fizeram silenciar a todos.
Enfim só, pensei, olhando o teto da camarata iluminado pela palidez das luzes-piloto...
O barulho do comboio e o da carreira ainda ecoavam em meus ouvidos. Meu corpo balançava desorientado pela confusão dos sentidos provocada pela falta do movimento contínuo que tivera durante todo o dia, como se ainda estivesse sendo embalado pelo vaivém das carruagens e da carreira.
Um frio crescente foi-me saindo do estômago e me apertou o peito. Senti-me longe dos meus, de tudo o que me era querido. Quis voltar para a vindima, para minha mãe, para meus amigos de artes. Mas era tarde demais. E lágrimas de saudade saíram-me dos olhos em mudos soluços abafados no travesseiro.
Chegou o primeiro dia de aulas.
A sineta tocou ás sete em ponto. Ninguém se mexeu. Parecia que o sono e a noite curta nos tinham transformado em bonecos e estávamos costurados na cama.
O padre foi abanando os pés das camas uma a uma, avisando que teríamos que estar na oração da manhã em vinte minutos.
Fez-nos acordar em sobressalto.
À medida que acordávamos, eu e mais metade dos colegas pulámos das camas como se as molas dos colchões nos tivessem ejetado para o alto. Todos estávamos ansiosos para pôr os assuntos em dia e contar as aventuras das férias.
Em silêncio nos olhávamos com os olhos brilhando de expectativa. E o padre passando no meio do corredor das camas nos olhava de cara fechada, lembrando que o horário era de silêncio. Tomamos banho, escovamos os dentes, e trocamos os pijamas pela roupa. E descendo dos céus seguimos calados para a oração da manhã.
O Padre, nosso novo diretor espiritual, deu as boas vindas a todos e nos manteve calmos para a missa. Mas que reza longa e demorada!
Finalmente o pequeno almoço, e nessa hora acabou o silêncio. Destravaram-se as línguas e nenhum de nós conseguia ouvir o outro de tanta pressa que tinha para contar as novidades. Parecia que o mesmo castigo que Deus dera aos homens na torre de Babel nos atingira. Nenhum de nós entendia ou deixava o outro falar. E a pressa de cada um em contar primeiro as aventuras nos fazia falar em uma língua impossível de entender. Aos poucos a confusão foi parando e começamos a perceber que era bom que cada um falasse de uma vez.
Como tínhamos o que falar depois de três meses de férias!
Voltamos do intervalo depois da primeira aula e entramos na sala como uma cabrada no pasto novo. Voavam mesas e livros, lápis e canetas, e nos empurrávamos uns aos outros entrando de roldão. Enfim, gastávamos as energias que o intervalo não tinha permitido esgotar.
As vozes foram-se calando e os passos do professor ecoaram cada vez mais próximos no assoalho do corredor, orquestrando um compasso de valsa com o ritmo e cadência das badaladas do sino que tocou à repetição do sinal das 10:00 horas. A regra era de esperar em silêncio, cada um em seu lugar.
A porta abriu-se devagar e entrou o Padre com duas caixas de livros dando fim á nossa expectativa de quem seria o professor.
Fez a oração e nos mandou sentar. Iríamos ter aulas de português com ele nesse ano. Com um sorriso nos tranqüilizou e do seu olhar saiu uma expressão simpática que nos fez começar a cochichar uns com os outros enquanto abria as caixas. Esse professor é fixe, ele é muito bom, dizíamos felizes.
Distribuiu os livros pela sala pedindo ajuda aos alunos da primeira fila e esperou que terminassem a distribuição.
Cresceu na sala o burburinho do desfolhar dos livros. O som de um bando de perdizes voou no ar na mistura dos livros abrindo e dos murmúrios de nossos comentários: olhem as figuras da página 25 e o poema da página 42. E assim corríamos de página em página voando ao sabor da novidade que cada um mostrava na descoberta do livro.
Ainda me lembro do cheiro de tinta do livro acabado de chegar da gráfica. E voei com meus olhos pelas páginas a procura das figuras e dos títulos para anunciar ao grupo também minhas descobertas.
O Padre fez-nos pousar ao nos chamar de volta. Aos poucos as perdizes voltaram para o restolho e pousaram nas mesas. Começamos a aula.
Apresentou o livro da disciplina e deu as instruções para a aula de gramática. Passou leituras, escrevemos o sumário e depois perguntou: todos receberam um livro chamado Os Meus Amores?
Confesso que não tive curiosidade de desfolhá-lo pois, fora a capa, só tinha letras e páginas escritas, os outros tinham imagens e figuras, e este em especial não despertou minha atenção. Só agora me apercebia dele. Além do mais, pensei com o mais beato dos pensamentos, o que faria um livro com de o nome “Os Meus Amores” na mão de seminaristas? No mínimo a vida de mais um santo, que chatice!
Tive que sair das minhas indagações com a pergunta do Padre: há aqui alguém de Mogadouro?
Olhei para os lados, procurando ver se naquele ano tinha mais alguém de lá, que eu não tivesse notado ainda, mesmo já sabendo que eu era único na sala.
Antes mesmo de me dar tempo para respirar e terminar minha pesquisa, dois colegas que eram de Vimioso apontaram para mim dizendo: Padre, ele é de Castelo Branco, Mogadouro.
-Covardes! Entregaram-me, sem ao menos me darem tempo para me preparar e sem nem mesmo saberem para que destino a pergunta me enviaria.
Meio sem voz, respondi – sim eu sou de Castelo Branco – e pensei: será que ele conhece o Pároco de lá e minhas artes chegaram na minha frente? Estou frito! Ele já sabe quantas e boas eu aprontei nas férias...
- Pois, muito bem! Que bom que temos alguém de Mogadouro, que pode nos ajudar nas aulas deste ano.
E, olhando para mim, perguntou:
- Conheces bem Mogadouro?
- Sim conheço – afinal, estudara lá no ciclo um ano antes de resolver salvar o mundo e ser padre e missionário.
- Lembras-te de quem é a estátua que há lá?
Respirando aliviado, por ver que desta vez não era sobre meus atos que a conversa teria rumo e por ver que a pergunta era fácil, disse sem pensar duas vezes, já me imaginando a receber o elogio por tal informação:
- A estátua de São Sebastião. Afinal estava no seminário e por ali os santos eram a primeira categoria na ordem geral das coisas. À minha mente veio a figura de bronze do santo amarrado ao tronco, cravejado das setas dos romanos. Caramba, como é bom lembrar e conhecer estas coisas! Minha nota vai ser boa! Ainda pensava quando, ao olhar para a cara do Padre, vi nela a expressão de quem se tinha surpreendido pela minha resposta inesperada.
São Sebastião? – falou ele.
Sim ! Há lá essa estátua em uma das praças e na igreja também há outra.
Sim! Ele respondeu entendendo agora o que eu falava. Ele é um dos padroeiros mas lembras-te de outra estatua além dessa lá em Mogadouro. O Padre era de Caçarelhos, concelho de Vimioso, e conhecia bem Mogadouro por lá ter feito algumas pregações.
Como pude errar? São Sebastião não valeu! De quem mais poderia ser? Ora, essa era nova para mim! Pela primeira vez entendi que havia uma nova classificação para a importância das coisas, diferente da do catecismo. E continuei pensando, até que se fez a luz.

Veio-me uma imagem nítida de anos atrás, de quando ainda era criança. Do dia em que conhecera Trindade Coelho. Lembrei-me de ter ido com meu pai à livraria Carvalho para comprar os livros e cadernos para a primeira classe. Devia ter uns seis anos, mas me lembro até hoje daquele dia.
Minha mão pequena segurava a mão de meu pai, calejada e quase fechada pelo reumatismo e pelo cabo da charrua.
Entramos na livraria. Foi como se estivéssemos entrando em um lugar mágico! Fiquei boquiaberto diante de tantas e novas maravilhas. Um mundo inesperado abria-se diante de meus olhos e me segurei forte nas mãos firmes de meu pai. Tantos livros...que cheiro bom de livros novos! Meu pai sentiu-me inseguro, apertou minha mão e me pegou no colo. Fez-me chegar mais alto para ver tudo o que havia lá . E de alto a baixo percorri cada prateleira, cada capa de caderno e livro, enfim, tudo o que meus olhos apressados e espantados conseguiam ver.
Quando saímos da livraria meu pai disse:
-Olha Luís, vou te mostrar uma pessoa importante da nossa terra, que escreveu livros e ficou famosa.
Atravessamos a rua ao sair da livraria. Olhei em frente e do outro lado da rua a casa dos correios. Pensei que era dela que ele estava a falar, afinal para trabalhar num lugar que entregava cartas tinha que ser alguém que escrevia muito. E deveria ser muito, muito importante. E já me imaginava a cumprimentar o chefe dos carteiros.
Mas no meio do caminho entre a livraria e os correios ele parou. Olhou para o céu, pegou-me no colo e ali na nossa frente, bem diante dos meus olhos, eu via pela primeira vez em cima de um pedestal de cantaria um homem sentado, todo verde, de bigode, escrevendo.
- Este é Trindade Coelho, meu filho.
O meu pai falou perto de meu ouvido com a voz embargada pela emoção na reverência que fazia .
- Ele foi grande e famoso escritor que fez famosa a nossa terra.
Olhei para a expressão da estatua e com a visão facilitada pelo meu pai que me ergueu mais alto ainda esticando os braços, vi bem de perto aquela figura sentada a escrever.
Perguntei pensativo ao meu pai:
- Por que o puseram ali a escrever?
-Por quê? Porque os livros dele ficarão para sempre, eu acho... Ou, para dizer a quem não sabe ler, como eu, o que está escrito nessa placa, que ele foi um grande escritor.
E, trazendo-me para si, apertou-me contra o peito e disse com firmeza:
-Mas tu, meu filho, tu não vais ter a minha sina que eu tive. Tu vais aprender a ler, vais poder ler esta placa e vais saber ler os livros dele e ser tão importante ou mais que o Trindade Coelho.
Respondi ao Padre com uma voz seca pela emoção que me veio ao me lembrar do meu pai: a estatua do Trindade Coelho! Falei voz firme e sem medo de errar de novo.
- Sim muito bem, muito bom! É ele mesmo. Durante este ano, vamos ler os contos que ele escreveu no livro Os Meus Amores.
A aula terminou com o toque da sineta dando o sinal para o intervalo. Todos, saíram a correr da sala para o campo de futebol. Eu fiquei lá, sentado como se estivesse colado á cadeira. Desfolhei o livro, folha por folha. E então li, na contra-capa, com o peito apertado pela emoção, um resumo da vida de Trindade Coelho.
Lembrei-me do meu pai, e meus olhos se encheram de lágrimas por estar concretizando uma das realizações que ele me tinha anunciado alguns anos atrás. Eram lágrimas de felicidade, e estava feliz ao ver que tinha realizado algo que meu pai não alcançou. Pensei na felicidade e orgulho que ele sentiria se eu pudesse ler para ele este pequeno trecho. E com os olhos embaçados pelas lágrimas, desatei a chorar com saudade dele me debruçando sobre o livro em cima do tampo da mesa.
Aquele foi um ano de muitas descobertas, um mundo novo se abriu perante os meus olhos. Sempre que sentia saudades de minha terra, de minha mãe ou do meu pai, fugia para as páginas do Trindade Coelho e me transportava em pensamento para dentro dos contos viajando com o linguajar dos personagens para minha terra, para meu canto encantado.
O ano foi chegando ao fim e as férias do verão vieram.
Retornei para Castelo Branco e na primeira feira em que fui a Mogadouro, o primeiro lugar onde parei foi à frente da estátua de Trindade Coelho. E à frente dele, como anos atrás, olhei a estátua. Estava sozinho dessa vez, não tinha mais o meu pai para me erguer no colo. De pé, olhando o alto, li a placa emocionado e agradeci, por estar de volta ao lugar de onde meus pensamentos nunca saíram.

10/05/2007

O tempo tem o dom.

O tempo tem o dom de nos pregar peças. Faz-nos esquecer fatos que queríamos guardar na lembrança para sempre, e mantém por conta própria avivados, outros que queríamos esquecer com todas as forças.
Enfim, o tempo é dono do próprio nariz e como tal ele toma as decisões como se fosse o diretor de uma longa metragem onde nós somos apenas personagens e ao mesmo tempo os autores da ação.
O tempo, corta, edita e produz. Muda a trilha sonora, os odores, aromas e sensações. Edita o registro da nossa mente e as lembranças. Ele é o dono do passado, o guardião das memórias, o escrivão do futuro. Acreditem! Fazer o que? Não há nada a fazer...
Mas já que é assim, procurem seus lugares no salão, vai começar o filme. Prometo, desde já, que será longo e cheio de emoções. Garanto que devolvo o valor do bilhete, caso não gostem. A pipoca e a 7UP (seve-nete) fica por vossa conta.

Cena I


O barulho do motor de uma carreira vai aumentando ao abrir a tela. Uma tomada panorâmica, mostra os montes, o ondular dos cabeços e os cortes dos vales e ribeiros, do alto da serra. Vê-se a estrada, serpenteando à frente, descendo sempre acompanhando os montes ladeando as encostas.
O movimento da câmera segue este traçado que nos salta aos olhos de forma estranha, agride a maciez dos montes e quebra a aparente calma e doçura da paisagem. Um enquadre novo, começa aos poucos a encher os olhos com os tons das fragas, seguindo as curvas até ao horizonte. Como uma montanha russa a imagem sobe e desce e acompanha as ondulações dos cortes de nível do leito de pedra e alcatrão, rasgados para abrir passagem. Marcas indeléveis da criação do homem para aproximar as distâncias, trazer o progresso. Mas que na contramão levou os filhos da terra para lugares distantes na busca por dias melhores, e esvaziou a terra de vida e de gentes.
Antigamente não havia a estrada aqui, era só uma rodeira para a estação de Bruçó, mas são outras histórias, outros tempos. Que depois eu conto!

Giestas em flor, pinhos, sobreiros, castanheiros, cerejais postes de telefone, linhas de alta tensão, passam rápido, saindo da tela, fincados ao chão ficam para trás. Teimosos ficam a dizer: já cá estávamos quando tu chegaste e vamos cá ficar quando tu te fores.

Aparece ao longe o telhado da Casa Grande e fica a brincar de se esconder, entre os montes e as curvas da estrada.
Ficam para trás os caminhos da serra, o cruzamento, e finalmente aparecem as eiras novas, as primeiras casas, os palheiros da entrada do povo, e por fim a casa grande.

A câmera parou.

Saindo do carro aos gritos o Diretor "Tempo", chama a equipe para organizar o dia e recomeçar a filmar. Aos berros em um sotaque tripeiro gritou-me ao ouvido: Preciso de ti nesta viagem. Trata de tirar da memória os nomes dos teus amigos, colegas, personagens dos dias, aventuras e histórias da aldeia. Não deixa nada nem ninguém de fora, quero saber de tudo e todos, portanto prepara um roteiro completo.
Fiquei a pensar: de onde vou tirar tanta coisa, será que vou dar conta?
Desci do largo da Casa Grande atordoado e fui distraido pela rua da casa do povo sem cumprimentar a roda que estava parada na porta da mercearia, cheguei na praça. Entrei no café pedi uma bica, e uma macieira, acendi um cigarro e pasmado fiquei-me a olhar os desenhos do fumo como se quizesse que eles mostrassem respostas ou me fizessem lembrar.
Estava tão distraido que levei um susto ao ver a minha própria imagem distorcida nas sobras de café na xicara. Resmunguei com aquela caricatura horrivel e disforme que estava para ali a rir de mim. Já refeito do susto, pela coragem que chegou ao enfiar, de um trago só, a macieira, goela abaixo, encarei o mostrengo e disse: Foste nos meter numa boa, seu estupor, ora esta, onde foste amarrar a burra! Paguei o café e saí para a praça.
Sentei-me nas escadas da casa da esquina e fiquei a lembrar dos nomes de todos com quem brinquei ali na praça. Foram vindo as cenas, os gritos, os sons dos jogos do tiroliro, as caçadas aos gambozinos com que enganavamos os de fora, das touradas com o carneiro do Zé Moleiro, das cascatas e bailes de São João, dos arraiais nas festas de São Bernardino e Sra. da Vila Velha, das tendas dos xixeiros, do soto da Variza, dos gelados... Quantas lembranças! E isso só do tempo da infância...
Comecei a fazer a lista e vi que tinha que separar por idades ou por fases. A vida junta e separa as pessoas em algum momento. Uns partiram outros chegaram, nasceram, outros foram morar fora, ou morreram. Fiquei a pensar que tinha de arrumar um jeito de por as lembranças da praça em ordem. Pensar em um modo de lembrar das fases para depois juntar os nomes e os personagens. Que trabalheira...
(Continua)

07/05/2007

Sossega...

Fernando Pessoa

"Sossega, coração! Não desesperes!
Talvez um dia, para além dos dias,
Encontres o que queres porque o queres.
Então, livre de falsas nostalgias,
Atingirás a perfeição de seres.

Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo!
Pobre esperança a de existir somente!
Como quem passa a mão pelo cabelo
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho o concebê-lo!

Sossega, coração, contudo! Dorme!
O sossego não quer razão nem causa.
Quer só a noite plácida e enorme,
A grande, universal, solene pausa
Antes que tudo em tudo se transforme."