Revisitando Castelo Branco

10/05/2007

O tempo tem o dom.

O tempo tem o dom de nos pregar peças. Faz-nos esquecer fatos que queríamos guardar na lembrança para sempre, e mantém por conta própria avivados, outros que queríamos esquecer com todas as forças.
Enfim, o tempo é dono do próprio nariz e como tal ele toma as decisões como se fosse o diretor de uma longa metragem onde nós somos apenas personagens e ao mesmo tempo os autores da ação.
O tempo, corta, edita e produz. Muda a trilha sonora, os odores, aromas e sensações. Edita o registro da nossa mente e as lembranças. Ele é o dono do passado, o guardião das memórias, o escrivão do futuro. Acreditem! Fazer o que? Não há nada a fazer...
Mas já que é assim, procurem seus lugares no salão, vai começar o filme. Prometo, desde já, que será longo e cheio de emoções. Garanto que devolvo o valor do bilhete, caso não gostem. A pipoca e a 7UP (seve-nete) fica por vossa conta.

Cena I


O barulho do motor de uma carreira vai aumentando ao abrir a tela. Uma tomada panorâmica, mostra os montes, o ondular dos cabeços e os cortes dos vales e ribeiros, do alto da serra. Vê-se a estrada, serpenteando à frente, descendo sempre acompanhando os montes ladeando as encostas.
O movimento da câmera segue este traçado que nos salta aos olhos de forma estranha, agride a maciez dos montes e quebra a aparente calma e doçura da paisagem. Um enquadre novo, começa aos poucos a encher os olhos com os tons das fragas, seguindo as curvas até ao horizonte. Como uma montanha russa a imagem sobe e desce e acompanha as ondulações dos cortes de nível do leito de pedra e alcatrão, rasgados para abrir passagem. Marcas indeléveis da criação do homem para aproximar as distâncias, trazer o progresso. Mas que na contramão levou os filhos da terra para lugares distantes na busca por dias melhores, e esvaziou a terra de vida e de gentes.
Antigamente não havia a estrada aqui, era só uma rodeira para a estação de Bruçó, mas são outras histórias, outros tempos. Que depois eu conto!

Giestas em flor, pinhos, sobreiros, castanheiros, cerejais postes de telefone, linhas de alta tensão, passam rápido, saindo da tela, fincados ao chão ficam para trás. Teimosos ficam a dizer: já cá estávamos quando tu chegaste e vamos cá ficar quando tu te fores.

Aparece ao longe o telhado da Casa Grande e fica a brincar de se esconder, entre os montes e as curvas da estrada.
Ficam para trás os caminhos da serra, o cruzamento, e finalmente aparecem as eiras novas, as primeiras casas, os palheiros da entrada do povo, e por fim a casa grande.

A câmera parou.

Saindo do carro aos gritos o Diretor "Tempo", chama a equipe para organizar o dia e recomeçar a filmar. Aos berros em um sotaque tripeiro gritou-me ao ouvido: Preciso de ti nesta viagem. Trata de tirar da memória os nomes dos teus amigos, colegas, personagens dos dias, aventuras e histórias da aldeia. Não deixa nada nem ninguém de fora, quero saber de tudo e todos, portanto prepara um roteiro completo.
Fiquei a pensar: de onde vou tirar tanta coisa, será que vou dar conta?
Desci do largo da Casa Grande atordoado e fui distraido pela rua da casa do povo sem cumprimentar a roda que estava parada na porta da mercearia, cheguei na praça. Entrei no café pedi uma bica, e uma macieira, acendi um cigarro e pasmado fiquei-me a olhar os desenhos do fumo como se quizesse que eles mostrassem respostas ou me fizessem lembrar.
Estava tão distraido que levei um susto ao ver a minha própria imagem distorcida nas sobras de café na xicara. Resmunguei com aquela caricatura horrivel e disforme que estava para ali a rir de mim. Já refeito do susto, pela coragem que chegou ao enfiar, de um trago só, a macieira, goela abaixo, encarei o mostrengo e disse: Foste nos meter numa boa, seu estupor, ora esta, onde foste amarrar a burra! Paguei o café e saí para a praça.
Sentei-me nas escadas da casa da esquina e fiquei a lembrar dos nomes de todos com quem brinquei ali na praça. Foram vindo as cenas, os gritos, os sons dos jogos do tiroliro, as caçadas aos gambozinos com que enganavamos os de fora, das touradas com o carneiro do Zé Moleiro, das cascatas e bailes de São João, dos arraiais nas festas de São Bernardino e Sra. da Vila Velha, das tendas dos xixeiros, do soto da Variza, dos gelados... Quantas lembranças! E isso só do tempo da infância...
Comecei a fazer a lista e vi que tinha que separar por idades ou por fases. A vida junta e separa as pessoas em algum momento. Uns partiram outros chegaram, nasceram, outros foram morar fora, ou morreram. Fiquei a pensar que tinha de arrumar um jeito de por as lembranças da praça em ordem. Pensar em um modo de lembrar das fases para depois juntar os nomes e os personagens. Que trabalheira...
(Continua)

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