Revisitando Castelo Branco

31/07/2010

PORTUGUESAS PARA O BRASIL: O SONHO SONHADO

Autor: Maria da Conceição Quinteiro
Para minhas tias Isabel, Luísa, Dorotéia e Ilda. Teresa, minha mãe. Que nasceram e viveram nessas aldeias.

Resumo
Este trabalho resulta de pesquisa etnográfica qualitativa, com dez mulheres portuguesas cujas histórias foram registradas por entrevistas. Mulheres emigradas sem seus familiares, ainda muito jovens, para São Paulo,nos anos 50, do século XX. Nasceram e residiram em aldeias de Trás-os-Montes, Minho e Beira Alta. Nestas aldeias aprenderam com suas mães, avós, tias e vizinhas os saberes e os fazeres que assegurassem a sobrevivência delas e dos seus, bem como a reprodução dos valores e normas do seu grupo social, que na aldeia era hierarquicamente demarcado, época em que ainda vigiam nas aldeias portuguesas, condições de vida precárias e relações sociais pré-modernas.
A rudeza do cotidiano associada à forte desvalorização de gênero sofrida pelas mulheres não impediram, que ousassem e enfrentassem as adversidades que encontrariam pelo caminho.
Sonhos, lendas e mitos permeavam o imaginário social naquelas aldeias isoladas e distantes de centros urbanos dinâmicos. Sonhos ainda vívidos na memória coletiva dos aldeões. Para entender os sonhos que impulsionaram a decisão dessas mulheres para “embarcarem”, vali-me do árduo quotidiano e dos “sonhos” de Bandarra, cujas profecias foram reinterpretadas por padre António Vieira, e resgatadas por Fernando Pessoa, em A Mensagem. O mito do paraíso terreal, difundido no mundo cristão no início da idade média, complementa o sonho sonhado por essas mulheres lusas.
Palavras- chave: memória coletiva, migração, casamento, sonhos, mito e vivências.
Maria da Conceição Quinteiro é Doutora em sociologia, pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo- USP.
Pós- doutorado na universidade de Oxford.
Coordenadora do Grupo de Estudos Gênero, Mulheres e Temas Transnacionais - Gemttra - USP
e-mail mquim@usp.br
É albicastrense, nasceu em Castelo Branco-Mogadouro, numa madrugada gélida após o último cantar do galo.
Artigo publicado em Quem tem medo dos feminismos, vol. II, editora Nova Delphi, Funchal, 1010
Introdução
A narrativa das suas histórias nos contextos sociais em que viveram as dez senhoras entrevistadas requereu tratos às memórias pessoais e à coletiva das aldeias, cenário das suas vivências. As lembranças afloraram com o decorrer da nossa conversa, por vezes, desconexas, fragmentadas, por vezes, inteiras, completas, como se os cotidianos o aldeão e o de São Paulo, de anos passados, houvessem transcorrido há pouco. Fragmentos, ou não, davam sentido à vivência de cada uma. Esforçaram-se para rememorar o mapa da aldeia: a praça, a fonte, a igreja, o lagar, a ribeira, o moinho, o cemitério e, aos poucos os lugares com suas imagens ajudaram-nas, enquanto referência nesse processo de rememoração. Lembranças que iam além das próprias vivências, que diziam respeito às dos seus ancestrais, trazidas pela memória coletiva. Esta transmite geração após geração, os mitos, as lendas, os fatos históricos, o saber-fazer, as normas, os valores, os comportamentos, as mentalidades, enfim a cultura e a sociabilidade da aldeia. E essa transmissão vai impregnada das atualizações que cada geração faz do seu tempo histórico. A memória coletiva é identitária, porque infunde nas gerações o sentimento de pertencer a um lugar a um tempo histórico. E este sentimento manteve-se inalterado nessas portuguesas, até hoje.
As entrevistas tiveram como objetivo precípuo o de tentar apreender nas representações sobre suas vidas nas aldeias algo que transcendesse o dia-a-dia e que vislumbrasse uma possibilidade “além da dor”, como o sonho e a fantasia, capazes de tornar a vida mais suave, apesar de toda rusticidade das condições de vida.
Pedi-lhes para falarem sobre os sonhos, aquilo que se escondia atrás daquela realidade. Não conseguiram atinar com o meu pedido, pois voltavam-se para as vivências daquele tosco cotidiano. Apreendê-los exigiu especial acuidade, pois, surgiam nas falas, esmaecidos, com vergonha de se mostrarem, enredados na memória das condições desumanas de vida.
Falaram-me de si. As dez jovens, hoje idosas, emigraram para o Brasil, com garra e coragem, tementes a Deus e obedientes, à risca, às normas que presidiam as sociabilidades da suas aldeias. Embarcaram para o Brasil, já cheias de saudades, de penas e de medos. Uma das recomendações que uma delas recebeu era a de ter cuidado com o mar, era perigoso porque tinha jacarés. Não conheciam o mar, nem jacarés. Mas embarcaram, apesar de tudo;
“Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu “ (Fernando Pessoa- Mar Português)
Dias e dias de “céu e mar” e de esperança. Dez jovens na década de 1950, uma viúva com a filha criancinha, uma casada por procuração e as demais solteiras. Hoje a mais idosa tem 84 anos e a mais jovem 79 anos. A viúva não casou mais. Uma permaneceu solteira, as demais casaram-se com portugueses, também aldeões e apenas uma ainda não enviuvou.
Para entendermos os seus sonhos, temos que entender o que eram as suas aldeias, a sua “micro-pátria[1], a aldeia era o seu país, aonde foram socializadas e os seus horizontes alcançavam apenas a vila ou a aldeia contígua. Mas, navegar era preciso.
As Aldeias
Nessas aldeias do norte, nordeste e centro de Portugal (e nas demais)assemelhavam-se as condições de vida, tão bem retratadas por Maria Lamas[2], a penosa vida das mulheres, realidade só alterada a partir de 1974.
A aldeia era desprovida de equipamentos que pudessem indicar qualquer modo de vida confortável, material ou não. Uma das entrevistadas entre lágrimas, disse-me:
“meu pai mandava- me às vacas, pastoreá-las, para beberem água e lá ficava até trazê-las de volta, com frio ou chuva lá andava com elas, ao voltar, cansada cheia de fome... Havia uma muito mansa, cantava- lhe, ela gostava, eu vinha à frente e dançava, parecia que ela entendia, gostava, depois eu segurava-me ao seu rabo, era puxada por ela na volta pra casa, e assim descansava, este era o meu divertimento” (dona Teresa, lavradora média).
A estrutura social das aldeias era rigidamente hierárquica, bem aos moldes das sociedades pré-modernas. Sociedades em que as relações sociais são orientadas pela visão de mundo, calcada na condição de nascimento, que Heller[3] denomina “artifício natural”.
Isto é, o nascimento determina as opções e o futuro das pessoas, e isto as priva de ascensão social e pessoal. E em que os fenômenos sociais são naturalizados, tais como, a superioridade social masculina em detrimento da inferioridade feminina, fortemente enraizadas na mentalidade dos aldeões . Em contraposição, nas sociedades em que vige a modernidade, a visão de mundo é calcada na contingência e esta é contextual. Nesta em tese todos podem ter mobilidade pessoal e social. Naquela estrutura social hierarquizada, rural e tradicional, três grupos sociais eram bem demarcados:
O dos grandes lavradores, proprietários de muitas terras, plantavam e colhiam além das necessidades de suas famílias e de seus animais. A família não trabalhava na terra, pois contratavam diaristas, os /as jornaleiros/as, os quais recebiam o pagamento em dinheiro, ou às vezes, trabalhavam de graça, maneira de ter fortalecer os laços com os abastados. Este grupo arrendava parte das suas terras e era o considerado rico.
O outro grupo era constituído pelo propriamente dito campesinato, os lavradores e suas famílias trabalhavam a terra e produziam eles próprios os valores de uso para a sua sobrevivência.
Dentre estes lavradores encontram–se os proprietários de terra médios e pequenos.
Nos médios e nos pequenos proprietários a unidade familiar era quase auto-suficiente. As mulheres se encarregavam da transformação da matéria prima ao produto final. Exemplo, o linho colhido e a lã cardada eram transformados em fios pelo fuso e a roca, depois tecidos no tear, transformados em lençóis, toalhas, mantas cobertores etc.
Os porcos, e os demais animais eram alimentados com o que se colhia: verduras, legumes, frutas, alguns cereais, além do pastoreio em terras, digamos coletivas, pois não tinham donos e todos podiam usufruir da relva que nelas crescia depois, transformados em chouriços, lingüiças, paios, presuntos, queijos etc. para o próprio consumo das famílias.
O excedente da produção após abastecer a família e os animais era vendido.
Às vezes arrendavam alguma terra dos maiores proprietários para ampliar sua colheita, e contratavam trabalhadores para essa tarefa.
Também por vezes trabalhavam à jeira, à jorna, em caso de precisão de dinheiro.
Terceiro, na escala social inferior encontravam-se os destituídos de terras, “os jornaleiros” os que vendiam o seu trabalho na aldeia, nas proximidades ou em terras mais distantes, nos campos ou no emprego doméstico, ou como pedreiros, carpinteiros, ferreiros etc.
A condição de nascimento impunha respeito ou não. Os destituídos de terras, geralmente filhos de outros como eles, eram considerados pelos lavradores como “serviçais”, porque prestavam serviços em troca de um pagamento, não eram dignos do estatuto de proprietário e, por isso, valiam menos socialmente e não usufruíam da consideração dos demais grupos da hierarquia social.
A “jornaleira”, na hierarquia social era o elo mais fraco e figura estigmatizada. As crianças ilegítimas nas aldeias, geralmente, eram filhas das “jornaleiras”. O’Neill (1987) observou em aldeias do norte trasmontano três gerações de “jornaleiras”, com filhos ilegítimos. Assim, cumpria-se a sina que lhes foi reservada numa sociedade tradicional ou pré- moderna: a impossibilidade da mudança e a permanência do estigma social da condição de nascimento.
A questão da honra feminina significava também a honra familiar, consubstanciada no recato e virgindade, caros para as famílias lavradoras. No entanto a quebra desse preceito parecia “natural” em famílias de jornaleiros. Os homens sentiam-se à vontade para assediarem sexualmente as mulheres desse grupo.
“Trabalhava de servir, arrumei um namorado e ele queria saber como eu estava. Ele tinha que ter certeza que eu era virgem, ele dizia que precisava me experimentar. Eu bati com a porta na cara dele, eu não queria dar este desgosto para minha mãe de casar não mais virgem”. (dona Belmira, jornaleira)
Entre mulheres e homens
A igualdade entre homens e mulheres era um valor e prática desconhecidos. Do cultivo da terra aos demais trabalhos eram da responsabilidade das mulheres: cuidavam do trato dos animais, produziam todos os valores de uso doméstico: cozer, tecer, bordar, fazer renda, tricotar, coser e todos os serviços com a casa e filhos e marido. A mulher dominava todos os espaços, era absoluta, “por isso, a mulher trabalha tanto em Portugal!,[4]“ sem a contrapartida da devida valorização, pois, além da hierarquia social orientando as relações entre os grupos sociais, existia forte hierarquia de gênero permeando cada grupo social. A subordinação da mulher ao homem iniciava-se na relação com os pais e irmãos, depois com o marido. Esta relação de gênero fundada na dominância masculina e desvalorização feminina encontra-se na tradição cultural mediterrânea e latina [5], na qual a organização do parentesco e da moral ancora-se nos valores de honra e vergonha. As mulheres por serem associadas com o mundo doméstico e com a família, nesta tradição, portam negatividade e sacralidade. O comportamento desonroso da mulher (desatinos de ordem sexual) macula a honra masculina e a da família. Assim, a mulher é sujeitada a exercer seu papel de reprodutora da espécie, mas alijada de exercer sua sexualidade, maneira eficaz de garantir o controle da conduta moral feminina e resguardar a honra masculina.
Para Borges Pereira[6], a representação ambivalente que se tem da mulher, deve-se ao fato da mulher ser percebida “ao mesmo tempo como fonte de muitos bens e fonte de muitos males, ambigüidade que a torna um ser potencialmente perigoso, que convêm domesticar. Daí as demonstrações públicas da subalternidade da mulher a partir de uma ritualização e simbolização que marcam ostensivamente as diferenças estruturais entre os dois sexos”
Estas dez mulheres, no Brasil, assim como os demais migrantes portugueses, reproduziram na relação entre homens e mulheres, o padrão de desigualdade das aldeias. A sobrecarga de trabalho das mulheres, conseqüência direta da maneira como eram percebidas, não foi alterada em São Paulo. Trabalharam tanto quanto lá, ajudaram os familiares, trabalharam muito na construção do patrimônio após o casamento com um português.
Embora a vida seja um infindável aprendizado, os valores incutidos na primeira infância são os que fincam raízes: valorização do trabalho, a discrição, a lealdade, a honestidade, a abnegação, a superioridade masculina, calaram fundo nas portuguesas dessas gerações e constituem as marcas de sua identidade aldeã, do sentimento de pertencer a um lugar e a um tempo histórico.
O casamento
No que se refere ao envolvimento afetivo-sexual, apenas no casamento e da maneira que Weber denominou como algo “não emancipado no ciclo da velha existência simples e orgânica do camponês” [7]. Ou, seja ao casal camponês a mera reprodução da família era o que importava, ao homem uma mulher que trabalhasse para o bem dele e o da família, além de satisfazer-lhe as necessidades sexuais, à mulher para ter a própria família e a tutela do marido.
“ porque a vida é para isso, ter uma família, não estar só, os pais morrem, os irmãos casam,e eu quero casar para cuidar da minha família, como minha mãe e minha avó”( dona Guida) “para ter uma família, trabalhar menos, para ter a própria casa e não ficar solteira” (dona Luz). Devaneios, refinamentos de sentimentos, não cabiam na cama conjugal.
Aquela mulher portuguesa por ser portadora de sacralidade e negatividade era tanto útil e necessária quanto desvalorizada, sobretudo, no contexto conjugal. Assim, era reconhecida como mera reprodutora da espécie, dona-de-casa, comandante e provedora do bem-estar de todos. Quase todas as portuguesas disseram-me que foram felizes, pois, tiveram uma família e a sua casa. E o homem ao lado, o que lhe conferia o seu valor social. Assim, o homem e o casamento eram necessários, o amor romântico só em outras circunstâncias, não na delas.
Estas mulheres no Brasil romperam uma parte da sina da “condição de nascimento”, o que nas aldeias seria impensável. Desatinos na aldeia, não. Todos seriam cometidos no Brasil onde “não existe pecado do lado debaixo do Equador", como diz a música de Chico Buarque, como, por exemplo, o casamento no Brasil de lavradoras com jornaleiros
Duas lavradoras fizeram casamentos exogâmicos, por medo de ficarem solteiras. Lavradoras , (como as jornaleiras), aqui no Brasil foram também empregadas domésticas, trabalho inadmissível para aquele grupo social na aldeia.
Mas, a sina da desigualdade de direitos e obrigações entre os gêneros não se desfez nessas portuguesas, apesar da coragem de virem sozinhas para o Brasil.
Os sonhos na aldeia
O sonho da permanência
Nas falas destas senhoras foi possível apreender dois tipos de sonhos. Um voltado para a realidade cotidiana, cujo alvo seria a busca por mais descanso, embora, isto fosse quase impossível naquelas circunstâncias. A este sonho o do quotidiano prosaico, denomino de sonho da permanência. Os seus desejos e sonhos a serem concretizados na própria aldeia eram parcos, e não podiam ser de outra maneira, pois quais horizontes contemplar, e a quais possibilidades recorrer a não ser à repetição de uma vida semelhante à da suas mães e avós?
O sonho de casar estava associado à esperança da diminuição na sua carga de trabalho. O casamento lhes poderia mudar a roda da fortuna, mesmo sabendo de antemão o que as esperava, não esmoreciam na busca dele. Casar, apesar dos encargos e trabalhos aumentados, em contrapartida, não sofreriam as agruras do estigma da solteirice. Pois, naquela mentalidade aldeã, nenhuma mulher poderia arcar sozinha com a sua própria vida, embora fossem elas, as que mais trabalhassem na família. O marido era a tutela necessária para substituir a do pai.
Quando lhes perguntei se suas mães trabalhavam menos que seus pais, responderam-me “não, a minha mãe muito mais, porque fazia tanto quanto ele nas terras, ainda cuidava da casa, dos filhos, do meu pai, ia trabalhar para os sogros e ainda fazia o pão e ia para o tear etc.” (dona Conceição)
No entanto, todas viam no casamento não a libertação da sujeição à dominância masculina e à rigorosa divisão de trabalho sexual, mas a continuação natural da reprodução biológica e social. Era um sonho esmaecido, uma necessidade social para fugir da carga de trabalhos pra outrem. Melhor trabalhar para a própria casa, filhos e marido“A mulher tem que ser aquela que sofre tudo, casou e não pode mais largar o marido. Era a opinião de lá e a gente respeitou aqui. O casal é um só, enfrenta tudo que é problema, até acabar tudo, até a morte” (dona Belmira).
O Sonho sonhado
Por que estas mulheres conseguiram dar o salto para buscar o que lá nunca conseguiriam? Para Heller[8] só quando necessidades radicais impõem forte descontentamento, é que a vida avança e se transforma. A radicalização das necessidades desencadeou o rompimento da cadeia de persistência deste fado imutável da aldeia.
O “embarque” era a possibilidade de um outro lugar com futuro.
Como esse futuro foi sendo forjado? Havia no substrato da memória coletiva ecos de outras eras, de esperanças e de outro porvir.
Esta memória coletiva fermentou a radicalização das necessidades, pois apontava para a esperança.
O sonho, o devaneio, a fantasia dão forma àquilo que gostaríamos que acontecesse. É como se criássemos para nós próprios a antecipação do futuro.
“O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esprança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte ----
Os beijos merecidos da verdade.” (Fernando Pessoa-Horizonte)
O sonho a ousadia a aventura são traços da cultura e da memória coletiva lusitana.
Bandarra[9] “Este, cujo coração foi / Não português mas Portugal” (FP- O Bandarra), as suas profecias traduzem a esperança de outro renascer. A calamidade que se abateu sobre Portugal, não ficaria impune, novos tempos trariam para tirar desforra o mesmo El Rei D.Sebastião, agora ressuscitado, para os crédulos cristãos, e fará juz à honra e glória dos lusos.
As profecias também apontam para a esperança, para novos tempos e para novas qualidades.
Padre Antonio Vieira, em 1659, retoma os “sonhos” de Bandarra e os reinterpreta, pois Portugal já saiu do jugo espanhol, parte da profecia se realizou. Agora a ressurreição seria de El Rei D.João, o quarto, que fundaria em Portugal o Quinto Império[10]. E com este novos feitos, novas glórias de Portugal a impor o respeito perdido aos quatro cantos do mundo.
O Sebastianismo que povoa a memória coletiva persiste também no Brasil, em inúmeras manifestações culturais e religiosas nos dias de hoje Por exemplo, a Cavalhada que é a reedição da batalha entre mouros e cristãos cujos cavaleiros vestidos à caráter, entre cantorias e rezas, guerreiam até a vitória dos cristãos e estes impõem o retorno de D.Sebastião.
“O mito é o nada que é tudo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou” (Fernando Pessoa, Ulisses).
A lenda ao entrar na realidade a fecunda. O mito é ferramenta, argamassa, junção de ideais e traços culturais de um povo. O mito não precisa ter existência histórica. O que importa é o que ele representa.
A ressurreição de D.Sebastião e de D.João ,o quarto , a padeira de Aljubarrota, a árvore da pataca, entre outros, que povoavam aquele imaginário social, aquela memória coletiva, traduzem a esperança encerrada no sonho sonhado das portuguesas. Também a coragem para seguir em frente, a ressurreição num outro lugar chamado Brasil.
Uma das senhoras, filha de lavradores médios de Trá-os-Montes, dois anos antes de embarcar já sabia que viria. Contou-me a visão que teve, ou um sonho sonhado:
“Estava desenganada deitada há dois meses sem forças para me levantar, estava à morte, que seria breve. As mulheres da aldeia ao redor da cama rezavam. O marceneiro já tinha ido medir-me para fazer o caixão. O padre já me havia dado a extrema unção. Estava com febre tifóide. Não sei se dormia ou se estava acordada, só sei que tive um sonho, uma visão, e esse sonho se realizou exatamente dois anos depois. Eu estava num barco com minha filha, estávamos no mar a caminho do Brasil, vi o mar e as ondas e me senti feliz e com coragem, no sonho encontrei minha irmã que não sabíamos dela há anos. Depois desse sonho comecei a melhorar, nem o padre acreditava. Só dois anos depois é que eu vim, naquela altura do sonho não pensava em vir e quando vi o mar e as ondas, eram exatamente iguais aos que eu vi no meu sonho” (dona Teresa).
Outro mito que povoa a memória coletiva é o do Paraíso Terreal[11].
Este mito foi criado a partir de um poema do século IV e difundiu- se, oralmente, pelo mundo cristão. Consistia basicamente na existência, aqui na terra, do Éden. Existia oculto em alguma parte da Terra. Esse mito juntamente com as descobertas marítimas do século XIV e XV, ganhou corpo e a imagem do Éden, secularizou-se e impulsionou a ocupação da América, principalmente pelos portugueses e espanhóis.
O Brasil para o mundo luso concretizou o sonho do paraíso terreal . O sonho fez-se real.
Pero Vaz De Caminha[12] na carta a El Rei D. Manuel, ofereceu ao mundo a primeira impressão da visão do Brasil, tudo aqui era dom de Deus: terra abundante, fértil, em se plantando tudo dá: matas, aves, rios, águas cristalinas, clima ameno, ausência de peste, sem miséria, e os habitantes saudáveis, bem fornidos, amistosos e inocentes. Tudo isso em contraste com a miséria, a sujeira, a peste, a doença, os invernos rigorosos, o trabalho áspero e as guerras do Velho Mundo. O paraíso terreal só podia ser no Brasil.
Mas o que essas senhoras, jovens, nos anos 50 esperavam do Brasil, que sonhos acalentavam às ocultas? Quais esperanças alavancaram a decisão radical, o Brasil estava muito distante das suas aldeias. Quantos terrores, quantas incertezas, porém uma grande certeza, a de que era preciso navegar.
“O sonho de vir para o Brasil era para ter algo que eu não podia ter nem ser lá”(d. Guida)
“Ouvia falar da árvore da pataca, não sei o que isso quer dizer, mas quando eu cheguei aqui já era tarde para abanar a árvore, porque já não tinha mais o que abanar, porque já estava abanada. E tive que trabalhar muito ...” (Dona Luz).
“Diziam que havia uma árvore que a gente subia nela e caiam muitas patacas no chão, por isso eu vim pra cá e também por ver os que iam daqui pra lá bem arrumados com dinheiro, saiam de lá passando fome como nós e voltavam ricos” (Dona Alice).
“A árvore da pataca não existia mais, porque não era como foi de chegar e enriquecer na hora, mas a gente enriqueceu. A árvore da pataca era um ditado antigo, desde sempre muito antigo, veio de longe, ninguém sabe, desde que houve o Brasil. Todos queriam melhorar de vida” (Dona Francisca).
Sobre as finalizações sem fim
Estas senhoras, quando jovens, na suas aldeias alimentavam dois desejos (talvez muitos outros ), conforme as suas falas, casar e vir para o Brasil.
Para estas aldeãs o casar pertencia ao ciclo natural da vida camponesa: o tempo da semeadura, o tempo das colheitas, o tempo da engorda dos animais, as fases da lua, os verões, os invernos, as primaveras e os outonos.
Casar, ter filhos, trabalhos árduos, alguns folguedos e morrer. O casar era uma fase da existência orgânica dos camponeses. Sonho que não era sonho era a repetição da permanência do modus vivendi e do modus operandi da aldeia.
Uma menor carga de trabalho era, na verdade, a grande ilusão. Benção divina, pois as poucas mulheres que a conseguiam carregavam uma cruz mais leve. “Cada qual tem a sua cruz” um fardo necessário, antes isso a ficar solteira. Assim foram socializadas.
O sonho do Brasil era de outra natureza, mesmo porque, apesar dele ser a conseqüência direta do cotidiano sem futuro, escapava da “cadeia natural” do casamento. O sonho do Brasil encerrava novas qualidades: a decisão pelo Brasil era a conseqüência do paroxismo do insuportável. Explosão das necessidades radicais a alavanca para a mudança.
A decisão pelo Brasil reflete a mudança das vontades, um drible no “artifício natural” que regia a vida nas aldeias. Era o desejado. Um sonho passível de concretização.
A árvore da pataca, o Paraíso Terreal estavam ao alcance de cada uma, bastava atravessar o mar Português enfrentar as saudades e até jacarés se preciso fosse.
No Brasil, a sina do nascimento se desfaz ou é relativizada, a começar pelos casamentos exogâmicos, entre grupos sociais distintos, o que era desatino na aldeia. As mulheres lavradoras, mandaram às favas a distinção do grupo social e trabalharam como serviçais.
A ascensão social, agora possível, geralmente conseguida com a colaboração direta das mulheres, seja na família, ou no jovem casal.
O homem aldeão destituído de terras, ou pequeno lavrador, no Brasil obteve a sua mobilidade social por meio do casamento com uma lavradora, trabalhadora incansável e, com alguma herança na terra.
Assim, o artifício natural é desfeito no que diz respeito à mobilidade social e aos casamentos. A rígida hierarquia social da aldeia se esgarçou em terras brasileiras. Porém, quanto a relação entre homens e mulheres, a naturalização do poder masculino em nada foi afetada. Famílias de portugueses, de primeira geração principalmente, reproduziram, à risca, o padrão de relação entre marido e mulher, entre homens e mulheres na família.
As oportunidades que a sociedade brasileira ofereceu, numa época em que a competência técnica não era necessária para progredir num negócio qualquer. Para ser bem sucedido bastavam contar com a vontade, as horas trabalhadas e a boa saúde. E progrediram.
O sonho dessas mulheres realizou-se: conseguiram viver uma vida digna com conforto, obtiveram liberdade para vender o seu trabalho em qualquer serviço, obtiveram dinheiro para pagar dívidas, ajudar as famílias de origem, e ainda para poupá-lo, ofereceram estudo aos seus filhos, além da escola primária, o que era impensável na aldeia, pois os outros níveis de escolaridade eram privilégio dos ricos .
Todas melhoraram as suas condições de vida até as que foram morar em cortiços, pensões etc., o fizeram provisoriamente.
A árvore da pataca nada mais era do que as possibilidades que encontrariam aqui. Mas a alegoria representava, para as senhoras, a visão do paraíso, do Éden. Pensavam que a vida lhes seria fácil. Algumas, as mais ingênuas, esperavam encontrar no Brasil a facilidade e a abundância edênicas. Encontraram-nas, se comparadas às das suas aldeias. Mas “nada cai do céu”. Não bastava abanar a árvore para caírem as patacas.
Era preciso muito trabalho investido, mas conseguiram ter o que batalharam. Lá na aldeia, jamais.
O sonho sonhado era o vislumbre de tempos e de vontades mudados, de um novo ser e de nova confiança, para se conviver com novas qualidades[13]: uma nova vida era a esperança e a certeza de que a ousadia do sonhado traria recompensas. E trouxe.
Bibliografia consultada
Dias, Antonio Jorge. 1953. Rio de Onor. Comunitarismo agro - pastoril. Porto. Instituto para Alta Cultura. Centro de Estudos Peninsulares.
Enciclopédia Einaudi. 1984. Vol.1 Memória – História. Porto. Imprensa Nacional – Casa Da Moeda.
Halbwachs, Maurice, 1990, A Memória Coletiva,São Paulo, edições Vértice, Editora Revista do Tribunais.
Lobo, Eulália Maria Lahmeyer .2001. Imigração Portuguesa no Brasil, São Paulo. Hucitec.
Martins, José de Souza.2008. A sociabilidade do homem simples. São Paulo. Contexto.
O’ Neill, Juan Brian.1987. Social inequality in a Portuguese hamlet-land,late marriage and banlardy, 1870 – 1978. Cambridge University Press.
Pessoa, Fernando. 2006. Mensagem.São Paulo. Companhia Das Letras.
Willems, Emílio,1955, “A Família Portuguesa Comtemporânea” Revista de sociologia vol.28, pp 7-59 ,São Paulo, Escola de Sociologia e Política

[1] Rocha - Trindade, M.B. 1987 “As micro- pátrias do interior português”. Revista do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Vol. 23, 4. pp 721-732.
[2] Lamas, Maria. 1950. As Mulheres do Meu País. Lisboa, Editora Actuális Ltd
[3] Heller, Agnes. 1988 “ On being satisfied in a insatisfied Society.In: Heller, A e Ferenc,F. The Posmodern Political Condition.Cambridge.Polity Press. pp30-437)
[4] Borges Pereira, João Batista. 1982. “Emigrantes e vida rural” In: Revista de Antropologia. Vol.XXV. Universidade de São Paulo. Dept. Ciências Sociais (Área de Antropologia) pp 139-155
[5] Julian,Pitt-Rivers. 1977.The fate of Shechem or the politics of sex: essays in the Antropology of the Mediterranean.Cambridge, Cambridge University Press
[5] Borges Pereira, 1982.p.140.
[7] Weber, Max. 1971. Ensaios de Sociologia. (Orgs) Herth, H. & Mills, W. Rio de Janeiro. Zahar, 1971.p.364.
[8] Heller,Agnes.1992. Theory of needs revisited. São Paulo: PUC ( Mimeografado).
[9] Gonçalo Anes Bandarra, o Bandarra
[10] Vieira, Antonio Padre.1997. Cartas vol.I. Porto. Imprensa Nacional – Casa Da Moeda. editora Biblioteca de Autores Portugueses.
[11] Holanda, Sérgio Buarque de. 2000. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo. Brasiliense.
[12] Caminha, Pero Vaz de, Carta a El Rey Dom Manuel. 1999. Pero Vaz de Caminha; transcrita e comentada por Maria Angela Villela – 2. Edição comentada e ilustrada- São Paulo. Ediouro.
[13] Alusão á primeira estrofe de soneto de Luís Vaz de Camões .1998. Sonetos de Camões. São Paulo. Ateliê editorial. p127 “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades/ muda-se o ser, muda-se a confiança; / todo mundo é composto por mudança, / tomando sempre novas qualidades”

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