Revisitando Castelo Branco

23/03/2015

A burra russa

Autor: Albano Solheira

Uma engrideira a pender da albarda, servia de estribo para montar. Era uma figura essa burra... Daquelas com o pelo cheio e espesso que precisava de tosquia como as ovelhas todo o ano no mês de março.

Montaria inseparável, onde o dono ia lá estava ela, companheira certa pra todas as horas. Um animal dócil de olhos meigos, porem teimosa como uma porta. Casmurra fazia o coitado do dono de gato e sapato.

Nos dias em que lhe apetecia, resolvia não trabalhar e não havia quem a fizesse sair do lugar. Nesses dias para a tirar do palheiro era preciso empurrá-la para a rua para a albardar.

Foi comprada dos ciganos na feira de mogadouro quando ainda era nova. Chegou para alegria do dono e auxilio na lida das terras. Espetacular, dava gosto ver como trabalhava pelos caminhos da aldeia, nas hortas a lavrar as batatas com o arado, escondida debaixo dos feixes carregada de ferranha só com a cabeça de fora a abocanhar as espigas, ou então com 5 sacas de trigo ao lombo a caminho da moagem. Não havia par pra ela!

Mas de burra não tinha nada, era sim, um animal muito esperto, que com o tempo começou a decorar os quatro pontos cardeais da aldeia. Anos de trabalho e de canseiras, foram-na fazendo ficar arisca e desconfiada e aos poucos começou a tomar atitudes no mínimo curiosas para um animal. Consoante a época do ano e a direção do caminho que o dono tomava ela saia apressada e prezepeira, ou empacava presa ao chão como se fosse uma estatua.

Por exemplo, quando ia pra devesa sabia que por ali os trabalhos eram poucos, pois só lá ia pra regar a horta, ou então quando subia o caminho da solheira para a ribeira de cavalos sabia que o que lhe tocava era guardar as vacas, ou a cortar o feno, assim toda satisfeita ia sem precisar picá-la, por ali ficava o dia inteiro, no pasto, tranqüila, sem nada para fazer. Mas por outro lado quando virava para vale de cabreiro, indo pelas figueirinhas, a história era outra... Logo ao chegar na praça, ali perto do tanque, ela empacava, bebia sossegada como que para enganar o dono e fazê-lo acreditar em milagres, como se tudo fosse correr bem. Mas logo em seguida, antes mesmo de terminarem os paralelos de cantaria da praça, a esperta empacava e não havia quem a fizesse andar... Fincava as quatro patas e parava. Podiam trazer uma junta de bois valentes para a carregarem que nada a tirava dali. Mas pudera, sabia bem o que a esperava para aqueles lados, era trabalho duro que não acabava mais, puxar a charrua o dia inteiro, lavrar as vinhas...

Mas isto também era só em certas estações, a burra contava o tempo, era só passar a época da lavra e das hortas que a danada levantava o rabo, sacudia as moscas e saia pra onde a quisessem levar.

Na segada gostava de ficar a sombra debaixo dos sobreiros ou carrascos, serena a olhar os donos a trabalhar. Vida boa esta do começo do verão. Trabalho leve. No palheiro pela manhã esperava até a hora perto do almoço, para começar a rotina. Vinham albardá-la para levar a merenda aos segadores. Dois alforges um em cada lado e a filha piquena do dono, montada no meio. A dona ia à frente e guiava a rédea para não correr o risco de derramarem as sopas e deixarem a todos com fome.

Tarefa comprida, ficava presa por uma engrideira amarrada nas arreçanhas perto do restolho, porem longe o suficiente para não chegar perto do molhos de trigo. Por pouco tempo, de tanto forçar as arreçanhas ela dava um jeito de se soltar e á menor distração lá estava ela de boca cheia a comer as espigas gradas dos molhos, um banquete delicioso e farto.

Adorava a época da segada. Mas, à medida que via o trigal sumir diante do restolho e os rilheiros cada vez em maior numero e mais altos, ficava de novo a mesma burra de sempre, arisca e teimosa e antes que desse o tempo da acarreja, a esperta parava de obedecer.

Passaram-se anos e o dono cansou de tanta teimosia. Desistiu comprou uma mais nova para ajudar na lida. Demorou a tomar a decisão, tinhas seus amores pela velha, e no fundo até admirava o caracter do animal, mas teve que aprender um dia de cada vez e com uma novidade depois da outra, que era tarefa perdida. Precisava de substituta para os trabalhos.

Ela por seu lado, enfim descansada,  viveu por muitos anos a pastar pelos lameiros e restolhos do chafariz.

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