Autor: Margarida Gonçalves
A Peça que falta no puzzle
No Blog “Revisitando Castelo Branco, há já textos que referem a existência de searas que forneciam o trigo e centeio para fabricar o bom e saboroso pão de Castelo Branco, cozido, em tempos idos, em fornos comunitários, por mãos hábeis de “famosas padeiras albicastrenses”. Informa-se sobre algumas utilizações do pão na gastronomia trasmontana (alheiras, sopas “xizes”, sopas da segada…)
Refere-se até a existência atual de uma das 2 modernas padarias.
Após ter lido estes textos que me transportaram a saudosos tempos, senti que havia, no entanto, uma lacuna; faltavam peças neste puzzle.
Talvez caiba a mim, filha de quem sou, fornecer então mais uma peça que encaixe e complete a imagem retalhada das lembranças de outrora…
Foi essa a primeira mola que me impulsionou a escrever esta narrativa. A segunda mola, Arlindo Parreira de seu nome, falou-me um dia em que nos encontramos no chat, em escrever sobre o meu pai que era um bom homem (disse ele…e eu concordo totalmente, sem falsa modéstia). Aqui estou então, recordando, enquanto escrevo estas palavras que, não sendo um texto sobre o meu pai, será, inevitável fazer-lhe referência neste tema a que esteve tão intimamente ligado.
Talvez um destes dias, quando vir que mais ninguém o fez, eu escreva mesmo sobre o meu amado progenitor, mas deixo por hora o espaço para alguém que queira antecipar-se a fazê-lo.
Depois do trigo verdejar nas searas, dourar nos campos, ser ceifado por mãos calejadas, debulhado nas eiras ensolaradas e as suas partes (palha e grão) serem recolhidas no palheiro e nas tulhas, respetivamente, vinha a fase intermédia - mas não menos importante que todas as outras, pois sem ela o ciclo não se completaria e não haveria o pão quente saciante dos mais ávidos apetites.
A tal peça de que vos venho falar, tenho a certeza que nenhum de vós esqueceu: Havia em Castelo Branco uma moagem. Podemos ainda ver no local uns vestígios pouco significativos, uma vez que foi descaraterizada, funcionando atualmente como forno da S.ª Maria do moinho.
A moagem, ou moinho, como sempre lhe chamei e gosto de lhe chamar, foi primeiro pertença do Sr Dr. Virgílio Pimentel, meu padrinho, médico residente em Castelo Branco (sim, porque a nossa aldeia já teve médico, hoje é que não tem!)-que, necessitando de um moleiro, acabou por dar essa tarefa ao meu querido pai – Paulo Gonçalves que desempenhou com grande entusiasmo e também muitos sacrifícios, essa função, desde rapaz solteiro, até pouco tempo antes de ir ter com Deus. Penso que Deus precisava de um bom moleiro.
Desde que nasci e por alguns anos desta minha vida (não tantos como gostaria-pois ainda hoje queria que fosse realidade em vez de terna recordação) me lembro de ser meu pai o único moleiro de Castelo Branco e arredores.
Voltando um pouco atrás nesta narrativa…
Inicialmente a azenha era movida pela força da nossa ribeira, cuja água, correndo por uma agueira, descia abruptamente por uma cuba cilíndrica feita em granito, caindo com toda a força numas pás que, rodando, transmitiam a energia necessária às mós que trituravam os grãos dos vários cereais. Nunca o vi funcionar deste modo, mas sei que assim era porque muitas vezes o meu pai contava essas histórias de ter que estar alerta quando havia água, aproveitando para moer todo o grão que as freguesas lhe haviam confiado. Muitas noites em claro porque nem sempre a água era suficiente para imprimir força de rotação às pedras da mó.
Depois modernizou-se o engenho, aplicando-lhe um motor “Pachancho” a gasóleo que o fazia não depender mais dos caprichos da ribeira, mas somente do fornecimento de diesel – e isso era mais controlado pelo ser humano, o que tornou tudo mais fácil, não significando contudo, que deixasse de haver necessidade de fazer serões trabalhando no moinho.
Muitos avós, pais e mães dos leitores deste texto, fizeram inúmeras viagens, com os burrinhos carregados com trigo, centeio e milho ou com os sacos de linho à cabeça, para que o meu pai fizesse a magia de transformar o dourado grão em alva e fina farinha.
Muitos vinham de fora, de outras terras (Quintas das Quebradas, Figueira, Vale de Porco, Zava, Meirinhos, Vilar do Rei, S. Pedro…).
Enquanto esperavam ser atendidos, abrigavam os burrinhos debaixo do “cabanal” e davam muitos dedos de conversa com o moleiro. O meu pai que sabia ser calado, era também bom conversador e o tempo ia passando mais depressa entre conversas inofensivas e o “tiquetaquear” da máquina.
Tantas vezes traziam o seu farnel para saborearem ao sol, na companhia de meu pai, a quem, com prazer, eu levava o almoço. Não era o relógio que marcava o horário, mas sim o número de sacos de cereal e a distância que tinham que percorrer os clientes. Enquanto as mós rodopiassem, esmagando os grãos, o moleiro tinha que assistir, verificando, corrigindo, acrescentando trigo na tremóia, ou apreciando a maciez da farinha, que todos queriam que desse origem ao melhor e mais branco pão cozido:
- Sr Paulo, veja lá se o meu pão sai branquinho! – Era a frase constantemente repetida pela mulherada. Não sabiam elas que “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” neste século XXI, se chegou à conclusão que o pão escuro é o mais saudável…e até mais saboroso, acho eu!
Na moagem não se fazia só farinha de trigo e de centeio. Na época de Natal, surgia um carreiro descontínuo de mulheres, alguns homens e até crianças, de todos os pontos da aldeia (e de fora), rumo ao moinho, com a sua fardela florida, feita de retalhos de chita, algodão ou linho, cheia de verdadeiro ouro em forma de grão, que depois de moído originava a farinha cor de sol, ingrediente primordial da sobremesa “milhos”, ainda hoje tradicional na mesa de Natal albicastrense.
E desta forma se completa o ciclo do pão, sendo para mim um orgulho ser filha de quem contribuiu em grande parte para “saciar a fome” a muitos …e ter ouvido, tantas vezes a cantiga:
Oh Margarida moleira
Dá-me da tua farinha
Ó i ó ai
Que a quero peneirar
Ó i ó ai
Com a minha peneirinha
Texto original de: Margarida Gonçalves (a própria Margarida moleira)
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