Tem lugares que o tempo faz ficar mais distantes a cada dia que passa. Parece que o relógio e o passar dos dias levam pra muito longe o que vivemos, para lugares onde não se pode mais chegar.
Os momentos, as companhias, amizades e a juventude, ficam
pra trás. Demoramos a tomar consciência de que não tem volta. Na juventude, tudo são alegrias e artes, parece que somos eternos e que tudo vai existir para sempre, mas, com o passar da vida, a realidade começa a mostrar que somos finitos.
Não, não, quero ficar para aqui a lamentar, isso não! Felizmente tem coisas que continuam sempre perto de nós, á distancia do pensamento e das lembranças. As boas lembranças… E um viva a todos os meus amigos e comparsas de fados e gamanços.
- Aposto cá pra mim, que já estão a pensar, que o regedor está a querer filosofar. - Podem tirar o burro da chuva e desalbardar a égua. - Era o que faltava...
- Estava aqui a pensar e a relembrar de uma roda de amigos que fizeram escola. Com o devido respeito e em memória aos “Generais”: O Artur da Rodela, o Luis Curraladas, o Luis Pardal, o Carrino e o Bilhó.
Leram bem, “Generais” e tínhamos o quartel montado e equipado na rodela. Os mais novos não conhecem mais a fama.
Das tropas e dos Generais nem tão pouco ao lugar de que lhes falo. Quero deixar aqui um olá para o Heitor, que deu vida nova aquele lugar maravilhoso. Meus parabéns! Há que restaurar e reconstruir os tesouros de nossa terra. Parabéns de novo!
Na rodela, tínhamos guarita, resguardo e tranquilidade para preparar os mais finos e dignos rituais da gastronomia albicastrense. Era por lá que se comiam os melhores perus, patas, galinhas, borregos, cabritos de toda a paróquia. Nem o senhor bispo de Bragança e Miranda, tinha tão rica e variada ementa nos almoços das visitas paroquiais pela diocese.
Eram banquetes de dar água na boca, preparados pelos melhores chefes de cozinha. Uns mestres de se tirar o chapéu. Curiosamente só cozinhavam lá na rodela, nas próprias casas ninguém os via chegar perto das panelas, renegavam qualquer possibilidade não fossem os parentes cair na lama… Fados e feitos mil. Que ricos tempos!
Nós os mais novos éramos os recrutas e quem de facto realizava os gamanços. Pois para se entrar na confraria tinha que se pagar um preço e passar por uma iniciação cheia de treinos e truques.
Os generais tinham uma fileira de alunos dedicados que faziam de tudo para entrar e cursar a escola das artes. Toda a malta queria fazer parte.
Deixem-me falar então do que era preciso fazer para passar de ano e de patente.
Primeiro treino: O pau de tirar ovos.
Os recrutas tinham que treinar até a exaustão para aprender a tirar os ovos dos galinheiros sem lá entrar e sem os quebrar ou fazer as galinhas enjeitarem o ninho. Ovos batidos com vinho e açúcar davam umas boas gemadas, que maravilhosas que eram. Davam-nos força e atitude.
- Então acham, que era fácil pegar os ovos? É porque nunca tentaram!
- Tinha que se ter talento e jeito. -E sabem porque? Porque, todos os galinheiros tinham apenas como porta, um buraco do tamanho de uma galinha. Este era o único meio de acesso aos ovos e ás galinhas. O buraco da porta era fechado á noite para impedir que a raposa entrasse e que as galinhas saíssem, ficava tapado na maioria das vezes com uma pedra ou tora de madeira. O exercício era fácil á primeira vista, mas, quando na prática nem tanto, mostrava sérias dificuldades.
Lembro que reprovou muitos recrutas novatos.
Deixem explicar como funcionava: Na ponta de um cajado ou vara comprida amarrávamos uma colher grande. - Isso mesmo das de sopa ou das de servir...
Com esta vara tínhamos o alcance para chegar ao ninho das galinhas, e a colher era o suporte ideal para sustentar o ovo durante o transporte até ao cesto com palha já preparado para os receber e transportar até ao quartel.
Era muito difícil equilibrar o ovo sem o quebrar ou fazer rolar para debaixo, e mais ainda evitar que as galinhas acordassem.
- Saibam que as pitas tem o sono leve, eu digo e afirmo por experiência própria.
Ao menor sobressalto as aves desatam a cantar. Cro, cro, cro, cro, co... Cro co cro. Quero crer que ave é que nem gente e tem alma. Isto porque ninguém gosta de ver o trabalho de dias sumir de uma hora para a outra. As coitadinhas ficavam aflitas por lhes roubarem os ovos. A labuta de muitos dias. E não havia jeito de as calar. Ou seja: se errou na colherada faltou ovo para fazer a gemada! E o recruta era reprovado!
Segundo treino: O anzol para pescar galinhas.
Primeiro, os recrutas iam pela aldeia a estudar um curral ou curralada onde as galinhas andassem em quantidade e fossem bem tratadas. Uma vez anotado o local. A ação de preparar o bote começava.
Em um fio comprido e, forte o suficiente, para suportar o peso de uma galinha bem gorda, amarrávamos alguns anzóis com grãos de milho espetados. Era um exercício que exigia camuflagem e paciência. Paciência para ficar horas á espera do efeito e camuflagem para não ser descoberto durante o cerco e da captura do alvo.
Quando a galinha mordia a isca tinha que se esperar que o anzol e o grão de milho entrassem goela abaixo bem fundo. Qualquer movimento mal pensado ou fora de tempo botava a perder toda a operação. Vi muitas galinhas perderem o bico por inexperiência dos recrutas. E uma vez descoberta a ação havia que se esgueirar pelos canelhos para não ser descoberto e ser chamado á atenção.
Terceiro treino: Dar de comer a quem tem fome
É sabido que as galinhas são um bicho guloso que não resiste a uma boa porção de grãos de milho cevada ou centeio. Como diz o ditado: “pela boca que se pega o peixe, e pelo bico a galinha” O autor deste novo ditado é aqui reconhecido: o Regedor.
Pois bem este exercício exigia constância e persistência. Vejam que os recrutas eram treinados nas maiores virtudes: paciência, descrição, constância, persistência... Enfim, umas santas práticas.
Voltando as galinhas...
Chegavamos de mansinho:
Piu piu piu piu pi pi pi piu piu piu
e a cantoria tinha que funcionar: pi pi pi piu piu piu
Durantes alguns dias sempre na mesma hora, o recruta ia ao curral dar de comer ás aves. Era um trabalho árduo, porque não era só alimentar as aves, havia que encantar o galo. Tinha uns valentes que disputavam o território conosco a tomar conta do pedaço.
Tinha galos e garnisés. E como dizíamos… homens e galos não se medem aos palmos… às vezes os menores eram os mais difíceis de contentar. Figurinhas difíceis…
Mas o estomago sempre foi uma das partes mais fáceis de conquistar em todos os seres do reino animal. Dando comida nem os galos piscavam em nos seguir.
Depois do quarto ou quinto dia as pitas e os galos do galinheiro já estavam confiados. Então era a hora de por saco de boca aberta na frente delas com uns grãos no fundo.
Era só esperar alguns minutos que as tolinhas gulosas entrassem para se fartar.
He he he
Morra marto morra farto... Não tardava nada, já estavam no papo. Digo escarranchadas na grelha de uma fogueira na rodela.
Quarto acto: a morte súbita
Já ouviram falar disso?
A dona do galinheiro ao chegar no pátio encontrava o peru mais gordo estirado de papo para o ar. Nem sinal de perigo mas o galinheiro inteiro, estava em alvoroço. Era glu glu glu pra cá cro cro cro pra lá. Enfim uma aflição de meter medo.
O que terá sido? Foi um ar? Uma tontura? Muito calor?
Como é que pode, carvalho! Ainda agora estava ali a abrir as penas para as peruas… o filho da mãe só tinha pinta… Que terá sido?
O que tinha sido, eu vou lhes contar: os nossos amigos lá estado antes dela com um alfinete. E cravaram-no na cabeça do peru mais valente.
Agoniada com a perda de um animal tão bonito tentava o impossível para ressuscitar a ave. Desatava a gritar para a vizinha que acorresse.
-Ó Josefa, vem cá mulher... Trás um copos de água fria pra jogar na cocoroca deste pero que se esvai. Valha-me são Bernardino!!!
Que nada, não havia quem conseguisse reanimar a pobrezinha da ave. Nem água nem vinho...
E dizia pra si mesma: - Ainda está quente, mas não mexe mais. Lá se vai mais um, já é o terceiro em dois meses... É muita desgraça todo o recheio das alheiras deste ano… Carvalho…
Depois de fazer várias tentativas. A dona finalmente desanimava e desistia. Com preguiça de cavar um buraco para enterrar a ave que era grande, e dava muito trabalho ela atirava com o peru para o meio do ribeiro da fontainha.
Morreu de moléstia desconhecida, nem pensar em comer dele. Vai que apegava o mal pra família!!!
De tocaia durante todo o tempo, os recrutas ficavam acocorados no ribeiro, á espera do final da história prontos para resgatar o gamanço.
Ai que ricos perus a rodela viu depenar.
Ainda se devem encontrar algumas penas enterradas por lá!
Vão lá ver, vão!
Que enquanto voltam eu penso em mais umas coisinhas pra contar.
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