Revisitando Castelo Branco

30/03/2010

O toque da matraca

Autor: Luis Pardal
Quando o sacristão sai pelas ruas a tocar a matraca é o sinal para chamar os fieis para a via sacra, as confissões, penitencias e pregações de salvação e arrependimento. Já quase vão vencidos os quarenta dias de jejum e abstinência e os pecados também lá vão, ou foram esquecidos, ou logo, logo, serão perdoados ou negociados por uma boa penitencia. Afinal já é semana santa e a quaresma termina no domingo, finalmente.
O barulho de metal a bater na madeira acaba com o silêncio das tardes. Um das matracas da quaresmainstrumento estranho que substitui o toque dos sinos durante a Semana Santa. A matraca é uma peça de madeira com cerca de vinte centímetros de largo e cinqüenta de comprimento e uns 03 cm de espessura. De cada lado barras de ferro maciço que lembram no formato duas aldravas de porta, presas nas pontas e que ao rodopiar batem na tábua fazendo um som ensurdecedor. Não tem como passar desapercebida pelas tardes da quaresma.
Por esta altura, o inverno já quase vai terminado. As tardes são mais longas e quentes sem o frio do inverno que passou. Uma luz nova recria a aldeia. Acabam-se os tons palha indiferentes da erva seca que ficou nos campos desde o estio do verão e que impregnou a paisagem de palidez e tons desbotados durante o outono e inverno.
Tudo renasce e se renova em tons alegres. Explodem cores e aromas pelos campos, o verde refrescante dos trigais, o amarelo adocicado das campainhas, o branco perfumado das amendoeiras em flor, o rosa aromático dos pessegueiros, cobertos de zumbidos e abelhas. A natureza inteira se veste de festa nas roupagens da primavera.
DSC02837 Os fins de tarde são mais alegres e sonoros, a garotada começa a fazer mais algazarra pelas ruas e o som sobe no ar junto com os cantos da passarada que chilreia sem parar na ânsia de acasalar a fazer ninho. Um burburinho fantástico que pode ser entendido por quem viveu na aldeia.A saída da matraca pelas ruas é também um motivo de celebração e convívio. Todos querem tocar, os mais velhos, os jovens e as crianças. Uns mostram como se faz, outros exibem-se para as moças, que propositalmente estão paradas de longe, a olhar. Recatadas e discretas, tão distantes que convencem quem olha, mas tudo nas aparências, para não ficarem mal faladas. Outros ainda, a quem os anos já retiram parte da força resistência, ao verem a matraca chegar, fazem-se de mestres e contadores de histórias de outros tempos para querer ensinar os mais novos.
O toque da matraca substitui, durante a semana santa,os sinos da aldeia  que ficam mudos até á meia noite do sábado de aleiluia. Uma tradição católica da paixão de Cristo, levada muito a sério pelo nosso povo em outros épocas. Tempos de silencio nos sinos e nas almas, reflexão, jejum, abstinência, pesar e luto. Os altares nus sem flores ou velas, e os ícones dos santos, cobertos por panos roxos ou pretos.
Sabemos que a vida na aldeia era compassada pelo toque dos sinos e a falta dele criava um forte impacto nas vidas das pessoas. O toque das ave-marias ao nascer e ao por do sol era o sinal, na falta de relógios, que determinava o começo e o fim dos trabalhos.
Esta tradição da quaresma obrigava a todos a ficarem alertas no sono e no soltar da jeira e jornada de trabalho era preciso lembrar o patrão da hora de acabar o dia.
A Igreja Católica criou muitos sinais externos para sensibilizar as almas. As gentes eram simples, sem estudos e fáceis de conduzir e os padres sábios conhecedores dos segredos da alma humana e da espiritualidade popular.
Vale mais uma imagem do que mil palavras, para explicar o caminho de sofrimentos da paixão e chegar ao milagre da ressurreição, bastava olhar a natureza. Nada poderia ser mais bem descrito. Exemplos vivos a acontecer na frente dos olhos, encenados por toda a natureza e em sincronia com a tradição da fé. O renascimento da primavera remete á ressurreição de cristo. O final do longo inverno e dos dias curtos terminava com a liturgia do sábado santo e círio pascal. O silencio da quaresma era quebrado em celebração da páscoa á meia noite do sábado na retomada do toque do sino.
O povo também criou suas lendas e crenças. Como a que dizia, que quem tocasse o sino primeiro na noite do sábado de pascoa, teria mais sorte para achar os ninhos de perdiz.
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A confissão

Hoje ao ouvir o toque da matraca,
Pensei em todos os meus pecados.
Padre, confesso, minha carne é fraca
Pintei e bordei por bons bocados.
 
Andei à tarde aos ninhos no canilhão
Joguei tiro-liro, bola, fito e ao pião
Aprontei ao botar algumas cacadas,
E sim, foram milhares de presepadas.
 
Foram altas artes, não nego, nem minto.
Na escola fui eu que espiei as raparigas
E que puxei o cabelo das mais crescidas
Sei, sou quase homem eu não desminto.
 
Fugi e esqueci minhas vacas no lameiro
Precisava ir com meus amigos a brincar
Sabe, não quero perder por ali o ano inteiro
Tenho que jogar a bola, ir, viver e aprontar.
 
Confesso tudo, mas daí-me logo a penitencia.
Já é tempo de correr e voltar pras brincadeiras!
Devo rezar um pai nosso, em cada dia? Paciência.
Tenho o Céu garantido quanto brinco nas eiras.
 
Albano Solheira

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