Autor: Zulmira Geraldes
Lembro-me vagamente de um grupo de homens, a cavar vigorosamente um terreno com leve aclive à beira do caminho já quase fora da aldeia. Ali seria construida uma casa nova Não havia ainda nenhuma construção na redondeza.
Enquanto os homens preparavam o terreno, ao longe já se ouviam os estrondos da pólvora a explodir as fragas de onde se extraíria o material básico necessário para a construção. Todas as casas eram feitas com grossas paredes de pedra..
A seguir, o vai e vem dos carros de bois cujo chiado denunciava a carga pesada. Acredito que toda a frota da aldeia estivesse em ação. O trabalho era muito mas todos ajudavam.
Não me lembro da subida das paredes nem da colocação do telhado mas do dia em que, já quase pronta, fomos visitar a obra . Minha irmã talvez tivesse apenas uns dois anos de idade. O assoalho estava quase pronto, faltavam uma tábua aqui e outra ali. Todos empolgados com a casa nova nem percebemos que as perninhas da pequena não alcançavam o vão e ela acabou caindo para o andar de baixo. Foi uma choradeira e uma correria. Mas felizmente não passou de um susto..
A casa era de bom tamanho para nossa família. .Além de meus pais com os três filhos pequenos ainda tinhamos conosco a minha avó e o tio Henrique que era irmão da minha mãe.
Até esta época viviamos na antiga casa que ficava à soalheira.
Na parte de cima da casa nova, por onde se chegava através de uma rampa externa, havia a entrecasa (hall) com ligação para a cozinha, a sala e os dormitórios.. Na parte inferior, as dependências naturais a todas as casas da aldeia.
Nesta parte, ficava a despensa e o tear . Minha mãe era uma excelente tecelã pois dali vi sair lindos tapetes, mantas de burell e colchas em lã de carneiro. Também lençóis do linho plantado, colhido e transformado pelas mãos das pessoas da família.
Aquele tear e sua localização eram providenciais. Minha mãe era tão alegre e falante que todos que por ali passavam paravam para descansar antes de chegar em casa e contar ou saber as novidades.
Ali ao lado, ficava o tonel do vinho. Era muito grande (talvez devido ao meu tamanho naquela época.). A seguir havia prateleiras com tãlhas de azeite,azeitonas, queijos, sacos de batatas, etc.
Esta entrada era adornada por uma roseira branca, trepadeira enorme que ia quase até o telhado e que emoldurava e perfumava todo o entorno da janela do nosso quarto.
Na cozinha havia dois grandes bancos de madeira em volta da lareira e o chupão tinha um corte na cantaria, que meu pai mandou fazer para não mais batermos a cabeça.
A sala era outro item à parte. Nela havia uma cristaleira com louças e uma enorme mesa de jantar Mas o que mais me marcou foi um quadro do Sagrado Coração de Jesus pendurado na parede. A imagem de Jesus nos fitava . De qualquer lugar da sala em que estivéssemos parecia que nos vigiava. Minha mãe usava esse recurso para nos assustar e nos manter comportados. No começo até funcionou pois cheguei a ter medo e até evitar ir sozinha à sala ....
Havia ainda uma porta com postigo em vidro que dava para a sacada e ao lado uma janela. Ali, no inverno, por detrás das vidraças, admirávamos a paisagem toda branquinha, dos dias e noites de neve. Viamos a gente a passar e a imprimir seus passos na brancura do caminho nevado.
Lá fora, além do muradal ao lado da casa, havia um belo jardim. Plantado pela Mãe Natureza.Era um bosque cheio de olmos e lá no alto de um deles, um ninho de cegonha. Havia um outro olmo também grande e oco e muito bom para brincadeiras.
Na primavera tudo ficava florido. Entre outras flores silvestres, tinhamos papoulas,violetas, estourotes, campainhas e margaridinhas com as quais através do trançado dos cabinhos fazíamos pulseiras e coroas para adornar as princesas ou cinderelas imaginárias.
Por entre os olmos havia um pequeno lago que no inverno congelava. Ali demos muitos tombos deslizando no carambelo.
Ao lado da ribeira havia uma amoreira que dava amoras muito grandes e suculentas e seus grandes galhos serviam de trampolim às nossas peripécias.
Na parte de trás da casa ficavam umas cortinhas reservadas ao cultivo de melões, dos mais perfumados que já vi. Estes terrenos eram delimitados, de um lado por frondosos sobreiros e um cerejal e na outra extremidade tinha uma enorme silveira que pendia para o caminho.
Tive o privilegio de ali passar a infância.
Convivi com a natureza de maneira plena. Com muita liberdade e segurança, no seio de uma família feliz e de muitos amigos queridos.
Quem não teria saudades de um lugar como este?
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