Acordei na madrugada da noite passada com o chilrear de pássaros nas traseiras do prédio onde vivo.
Um tipo de som pouco habitual nesta “urbe” que nunca dorme. Muito distinto dos demais sons que cruzam ruas e avenidas. O ruído do carro do lixo a altas horas da noite, a sirene apressada em salvar mais uma vida, o “pássaro de aço” que cruza os céus e que faz ecoar o som ao qual jamais me habituarei, ou, o vizinho que chegou e bateu a porta do apartamento ao lado com um pouco mais de força que o habitual.
Acordei ao som da melodia fora do comum. … chilrear de pássaros numa árvore do jardim das traseiras. Fiquei sem dormir durante algum tempo a absorver esse bailado de asas sonoras em tempo primaveril.
Pensei: “ Pois é! Já estamos em Abril”
Abril águas mil, o mês que traz o sol de primavera, que faz rebentar a folha mais verde e luminosa. O mês que traz as chuvas que chamam longos arco-iris. Enquanto pensava em tudo isto, a minha mente abriu mais um ficheiro de Trás-os-Montes. Talvez a idade me traga esta nostalgia dos montes mansos e verdes, das fragas serenamente pousadas à espera do sol que as vai secar de tanta chuva.
O mês de Abril em Trás-os-Montes enche-se de cores que desabrocham aqui e acolá. Os cheiros intensificam-se e nas ribeiras ainda se vêm verdes as rabaças, as merujes e os agriões.
Logo a seguir à Páscoa era comum irmos comer o folar à ribeira da Freixeda, nesse dia saímos todos de manhã cedinho com cestas de verga cheias de pequenas delícias que hoje me sabem a “Gourmet”.
Os homens acendiam uma fogueira e as mulheres iam apanhar os agriões na ribeira, pois o tempero vinha já preparado. As crianças tentavam apanhar algum animal imaginário ou seguir as pegadas de um coelho ou espreitar pelos buracos das toupeiras.
Abril trazia os dias mais longos com a mudança de hora e o sol apesar de traiçoeiro, era bem apreciado naquele lameiro de cheiro a erva fresca de hortelã silvestre.
No entanto, nem sempre corria bem. Anos havia em que a chuva de Abril nos surpreendia e todos iam já preparados com os sombreiros pretos tão característicos.
No entanto, nem sempre corria bem. Anos havia em que a chuva de Abril nos surpreendia e todos iam já preparados com os sombreiros pretos tão característicos.
Ao longo da minha infância muitas foram as águas que correram em Abril, mas houve um dia diferente…
Tinha eu dez anos e estava como sempre sentada na soleira da porta de casa, embrulhada no meu fértil imaginário. Como sempre e à mesma hora chegavam os amigos do meu avô que lhe faziam companhia das cartas durante a tarde. Nesse dia o meu avô encheu quatro copos de vinho e disse:
- Hoje já podemos falar á vontade! Acabou a ditadura!
Eu, não entendi muito bem o que eles diziam , mas pela conversa percebi que muitas águas tinham vertido dos olhos de muita gente até aquele dia.
Peguei na minha boneca e corri até casa da minha melhor amiga e colega de carteira de escola. Chamei-a com muito empenho em lhe comunicar a novidade do dia.
Peguei na minha boneca e corri até casa da minha melhor amiga e colega de carteira de escola. Chamei-a com muito empenho em lhe comunicar a novidade do dia.
Subimos o muro da “cortinha” onde habitualmente brincávamos e eu disse:
- Sabes? Hoje é um dia especial…..já podemos falar á vontade! Acabou a ditadura!
- Sabes? Hoje é um dia especial…..já podemos falar á vontade! Acabou a ditadura!
A Adelina, a minha amiga respondeu-me:
- Eu sei! Vamos brincar?
- Eu sei! Vamos brincar?
Brincamos toda a tarde com a liberdade que sempre havíamos tido até esse dia. No entanto muitas águas correram após esse mês de Abril!
Apesar de águas mil, que ainda hoje correm pelas ruas do nosso país e por todo o mundo, os pássaros continuam a chilrear nas madrugadas de campos e cidades. Sons que agitam memórias que nos levam a pensar que o passado já lá vai e que no rebentar de cada nova primavera, nasce uma nova flor que mesmo sendo parecida com a anterior, não é a mesma.
A vida num eterno retorno, o ciclo natural que repõe a ordem após longos meses de invernia…
A primavera da vida, pode ter passado mas nunca deixemos de nos deslumbrar com a beleza dos sons do pássaro da nossa alma.
Publicada por Dulce Pombo no blog “coisas mais coisas” .
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