Revisitando Castelo Branco

30/09/2010

Para Ti...

Autor: Dulce Pombo
Uma grande amiga criou um jornal em Tras-os-Montes , o Porquê , e convidou-me para ser cronista. Como era Altura de Natal resolvi ir ao ficheiro das minhas memórias e aproveito para vos desejar um feliz Natal.

PORQUÊ???
Porque será que Trás – os - Montes tem uma magia especial em Dezembro?
Será do cheiro da lenha a estalar na lareira enquanto a água ferve na panela de ferro em que os meus antepassados cozeram o bacalhau, o nabo a batata e a couve na noite de Natal? Ou será que outras razões, muito mais antigas perduram na mágica que nos envolve quando chegamos e ouvimos um sonoro “ Entre”?
E… quando entramos, por cima de nós já quase seco, o fumeiro é o nosso “self-service”.
Gostos e paladares temperados com a sabedoria das mulheres que em água gelada lavaram as tripas no dia da matança do porco. Mulheres transmontanas que em outros tempos mais duros e pobres, do nada aprenderam a fazer tudo! E foi nesse nada que as mãos e a mente descobriram a criatividade de encher uma mesa todos os dias do ano.
Chegar a Trás – os – Montes em Dezembro é como abrir o ficheiro da nossa memória olfactiva. O cheiro da lenha queimada. O cheiro da cozinha que a colher de pau vai apurando. O cheiro do azeite a espremer no lagar enquanto o forno vai cozendo o pão que persiste num ritual de mãos sábias ano após ano!
Por mais “modernices” que o dinheiro possa comprar, nada se compara às velhas tradições! Aquelas tradições que nos fazem ter saudades da terra. Ter saudades da saudação diária do Bom dia, Boa tarde ou Boa noite!
Nasci e cresci numa aldeia de Trás – os Montes e sempre que chega Dezembro me lembro das azáfamas das vésperas de Natal. As mulheres iam arrumando a casa para receber os filhos e netos que viriam de França, da Alemanha ou de Lisboa. Os homens juntavam-se no adro depois de já passada a azáfama da azeitona. No tempo em que ainda não havia casas do povo, havia uma taberna ou um café, onde só os homens podiam entrar para jogar a “bisca”, “ as copas” ou a “sueca”.
Ao fim do dia, o Sr. Padre convocava as senhoras e cavalheiros mais dotados de voz para ensaiar os cânticos para a noite das noites de Dezembro.
Enquanto isso, cabia aos rapazes da aldeia juntar lenha para a fogueira do galo. Grandes troncos de velhas árvores eram empilhados no largo para espanto dos mais velhos. Recolher muita lenha, além de ser uma árdua tarefa era como se de novo o ritual se cumpria para que o ano vindouro fosse quente e bem recheado de abundância.
No dia da consoada reinava pela cozinha uma grande azáfama. Panelas e “ sertãs” (frigideira) não descansavam. Lembro-me de roubar as rabanadas quentes polvilhadas com açúcar e canela. Depois vinham os sonhos, os milhos doces, a aletria, o arroz doce, as filhoses entre outras iguarias que só nesta noite se comiam.
Todos estavam presentes na ceia de Natal. Os mais velhos não viviam em asilos ou casas de repouso, o seu asilo era o nosso coração e a casa dos filhos era a alegria do seu olhar. Eram eles que me ofereciam a melhor prenda da noite. Eram eles que se lembravam de me dar colinho porque a minha mãe andava sempre atarefada para que tudo corresse bem!
De tudo isto me lembro, mas …. Havia sempre, ano após ano um momento de pausa lá em casa. O meu pai sempre perguntava?
- Mas afinal a tua mãe nunca mais chega? Onde ela foi desta vez?Ninguém respondia mas todos sabíamos onde ela tinha ido. Á casa dos meninos que viviam no “Vale” ou nas “Eiras” levar o Natal. Todos colaborávamos nessa partilha. Era obrigação nossa. Partilhar era o verdadeiro espírito de Natal. Mesmo o meu avô que não se entendia com a Igreja, (mas que nunca me explicou bem o porquê), nos ensinou que esse era o momento mais importante do dia.
Na minha aldeia não havia pobres, havia pessoas com menos possibilidades. “Ninguém é pobre senão de juízo” dizia o meu avô.
Na verdade, nem todos tinham aprendido uma arte e a agricultura não matava a fome de famílias numerosas. No entanto, toda a aldeia estava consciente dessa realidade. Não era falada mas era assumida. Todos faziam a sua parte e muitos dos meninos que vestiram roupas minhas, hoje, com muita alegria e orgulho os sei bem sucedidos e realizados. Hoje orgulho-me de os ver também chegar todos os anos em Dezembro com a mesma saudade e nostalgia das memórias de Natais muito divertidos e mágicos.
Desde estes tempos, muitos Natais se passaram, o mundo evoluiu e nós assistimos á missa do galo em directo pela televisão. O Sr. Padre só já agradece que alguém chegue. Já não se beija o menino no final da missa do galo por causa das doenças e nas ruas da minha aldeia não há pobres a pedir, mas da cidade onde vivo, até á minha aldeia, passo sempre por muitos…
Pobreza não é apenas a que pede nas ruas, nem hoje existem famílias numerosas.
Pobreza é estar só! Não ser visitado por família ou amigos no dia de Natal. É não ter coragem de dizer que não tem como comprar o bacalhau. Pobreza é não ter uma mão amiga, um sorriso, um cumprimento.
Ser pobre é não ter saúde!
Não ter Paz!
Não ter alegria em ver os nossos por perto sempre que gostaríamos.
Sempre dizemos que o Natal é das crianças. Eu digo que o Natal é das crianças e dos mais velhos. Das crianças porque são elas o motor da mágica da vida. Dos idosos porque foram eles o motor do sustento da nossa vida. A eles devemos tudo! Absolutamente tudo! A possibilidade de aqui estarmos. A sabedoria da vida!
Os Transmontanos foram sempre gente que laborou em todas as artes e que encheram as feiras de produtos que hoje são importados.
Hoje os Natais deixaram de ter a magia da infância. Substitui-se a magia das correrias da ansiedade pelas prendas do “ Menino Jesus” e pela azáfama da Fogueira do Galo, pelo ar condicionado dos centros comerciais.
Hoje os nossos filhos recebem catálogos com sugestões de prendas de Natal e o “ Menino Jesus” já não se usa. O “Pai Natal” também não se aguentou para passar a ser apenas uma figura comercial que o Marketing tão bem explora.
Mas não é por estas razões que os Natais não são recheados da magia!
Não há magia porque a avó já não faz os “ miotes” (meias) para os netos aquecerem os pés nas noites frias de Janeiro. Nem tão pouco é bem entendida porque a velhice não se usa mais. Nas novelas que vemos, as pessoas não envelhecem e se envelhecem, não se vêm mais. A magia já não é a mesma porque agora se compra tudo feito e os netos passam o dia no computador ou na consola em frente á televisão. E … não há tempo para partilhar em casa, muito menos para partilhar com a comunidade.
Mas também não lhes sugerimos que partilhem, assim não nos incomodam. É mais fácil ser passivo e aceitar que a vida seja monótona. Assistimos á moda do voluntariado em directo e em horário nobre.
Seria menos fastidioso e bem mais interessante que todo o mundo fosse como uma aldeia de Trás-os-Montes que integra todos e faz uma pausa antes de jantar…. Uma pausa que ninguém precisaria de explicar nem filmar para dizer ao mundo que somos generosos.
Ser generoso é algo que brota directamente do coração e é entendido como tão nosso que assume um carácter tão íntimo, incapaz de se auto promover.
A generosidade não deveria ser vendida nem pedida á porta dos supermercados se todos tivéssemos a consciência plena do que significa.
Estamos mais preocupados em viver uma vida consumista. Nada contra os que consomem, apenas um gesto de moderação faria toda a diferença, não só na nossa cidade como em todo o mundo.
Por isso tenho sempre saudade dos Natais numa aldeia em Trás-os-Montes. Na nossa terra há sempre uma couve na panela de quem a não planta. Sempre um “Entre” disposto a abrir lugar na mesa.
Ser Transmontano é saber o sofrimento que as fragas escondem durante gerações. É saber que o meu vizinho é meu vizinho e mesmo que existam algumas diferenças, pode contar com o meu socorro.
A nossa história e o clima nos juntaram em casarios para que entendêssemos o significado da palavra partilha. Não deveríamos deixar que outros valores menos nobres nos separassem e todos juntos conseguíssemos voltar a fazer enormes Fogueiras do Galo.
Seria um verdadeiro modelo de partilha que todos se unissem em volta dessa fogueira para repensar na metáfora do Natal. O renascimento, uma nova vida, um novo ano onde todos se empenhassem em minorar o sofrimento dos nossos mais próximos.
O Sr. Padre ficaria feliz, as nossas avós mais ainda, as nossas mães voltariam a sorrir. As crianças correriam de novo pelas nossas ruas e mais escolas abririam. Escolas de Amor, de Paz e de Harmonia.
Ser de Trás-os-montes significa acreditar no que os nossos antepassados acreditam: Ser possível ser grande em nobreza de carácter e ter a alegria de saber que os nossos sempre voltam á terra e se inspiram.
As memórias que me alimentam na cidade são as das pessoas de Trás-os-montes que na sua tão especial simplicidade e generosidade por nós sempre esperam.
E…agora que um novo Natal nos espera, desejo a todos os Aguiarenses e a todos os transmontanos, a todos os meus amigos e a todas as pessoas do mundo, que juntos renovemos os votos de entre ajuda e plena partilha. Só assim podemos evoluir em direcção a nós próprios e significa essa evolução, o bem comum.
Gostaria de terminar contando a todos os leitores uma pequena história:
“ Um dia há muitos, muitos anos nasceu numa terra longínqua uma criança muito especial que iria mostrar ao mundo o poder da palavra Amor Incondicional. Esse menino viria a ser ao longo da história uma pessoa que guiaria milhões de pessoas a acreditar que é possível ter um mundo melhor. Esse menino nasceu pobre, tão pobre que a sua cama foi uma manjedoura. Mas ele sempre acreditou que poderia viver num mundo melhor e lutou para que isso fosse possível. Foi morto por querer acreditar que era possível todos sermos felizes nesta terra. Deu a vida por nós! Assim rezam as escrituras! “
Se há mais de dois mil anos, com tão poucas ferramentas, apenas um carpinteiro, conseguiu fazer tanto, eu pergunto:
- Que nos faltará a nós que temos tudo á nossa disposição para encetar tão boa obra?
Porque será que não nos esquecemos uma noite de nós em tantas que vivemos ao longo do ano? Porque será que não pensamos nessa mensagem de verdadeira entrega aos que de nós precisam?
PORQUÊ?
( Texto de Dulce Pombo, editado no Jornal Porquê no passado dia 17)
Publicada por Dulce Pombo no blog “coisas mais coisas” .
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