Revisitando Castelo Branco

26/12/2010

O último presente do menino Jesus.

Autor: Luis Pardal
 
Em uma noite de Natal há alguns anos atrás, eu prometi a mim mesmo,que iria descobrir como, o menino Jesus fazia para deixar os presentes, nas botas que religiosamente, ao voltar da missa do galo, eu punha perto da lareira antes de ir dormir. Em uma noite de Natal há alguns anos atrás, eu prometi a mim mesmo,que iria descobrir como, o menino Jesus fazia para deixar os presentes, nas botas que religiosamente, ao voltar da missa do galo, eu punha perto da lareira antes de ir dormir. Desde o ultimo Natal andava intrigado com e tinha jurado, a façanha, de que deste ano não passava, sem descobrir de que maneira ele vinha e mais importante que isso, por onde ele entrava para deixar os presentes, na lareira da minha casa. Determinado e muito intrigado fiz planos e montei uma estratégia infalível.
Todo este interesse começou no soto da Tia Variza, dias antes do ultimo natal, em uma conversa muito animada com ela. Os mais novos talvez não lembrem que ficava na praça.
Perto do Natal era um sonho entrar lá. Ela e marido, o Sr Eloi, enchiam as prateleiras de brinquedos, e o mais curioso é que por algum motivo mágico de um dia para o outro, alguns brinquedos desapareciam. No dia seguinte não estavam mais lá e eu, para não perder nada de vista, diariamente monitorava o sumiço cada vez mais intrigado.
kombi Eles tinham uma Volkswagen azul que até hoje lembro. Todo ano, pelo mês de novembro, saiam para ir ao Porto e a outras cidades fazer compras e, quando voltavam, a camionete estava abarrotada de caixas e embrulhos. O soto brilhava cheio de novidades e de fantasia. Eram pisca-piscas, arvores de natal, fitas, bolas coloridas, e muitos, muitos brinquedos. Eu ficava lá de olhos esbugalhados o tempo que eu podia. Minha mãe e meu pai tinham que ir lá me buscar ou mandar alguma das minhas irmãs para me fazer voltar ao mundo real. Mas não era tarefa fácil, era preciso me arrastar à força ou pendurado pelas orelhas. Esta segunda opção era a mais bem sucedida e a preferida das manas.
Os dias que antecediam o Natal, eram dias muito animados. Todos os meus amigos que já andavam na escola, tinham alguns dias de férias, perto do natal. Sobrava mais gente para pintar e bordar. E como quem tem vagar faz colheres, nós pintávamos o sete de muitas maneiras. Os rapazes maiores, nas noites estreladas, iam ao tanque da praça e com uma caldeira ou balde jogavam água para fazer uma trilha que no dia seguinte amanhecia solidificada pela geada. Era a nossa pista de patinação. Ficávamos em fila para deslizar. Depois com o embalo de uma corrida rápida, escorregávamos de ponta a ponta. Não preciso dizer que entre um escorregão e outro sempre aconteciam pequenos acidentes e brigas de garotos. Brincadeira não demorava muito tempo, conforme o dia avançava o gelo derretia e nós também tempo depois, engaranhados, pelo frio, fazíamos uma fogueira, com lenha gamada as escondidas das rilhas dos vizinhos ou íamos para a lareira de algum para nos aquecermos ao lume.
O inverno trazia algumas rotinas interessantes. Naquela época a maioria das casas ainda não tinham água canalizada e os marcos da praça, da Igreja, do vale e da rua das flores eram o ponto de encontro e de abastecimento. Uma rotina que fazia parte dos afazeres das mulheres albicastrenses ”ir à água” algumas tinham que ir varias vezes ao dia. Pois para lavar a cara de manhã, fazer a comida, lavar a louça, era preciso ir ao marco. Por causa da geada em muitos dias era preciso aquecer as torneiras com um fachuqueiro de palha para descongelar e poderem encher as cântaras.
Nas semanas antes do natal os mordomos faziam o presépio. A cada ano uma novidade diferente o deixava mais esperado na curiosidade de todos. Cada comissão de festas queria fazer melhor que a anterior. O resultado final, apesar da saudável competição, nem sempre era dos mais bonitos. Na tentativa de superar os anteriores, por vezes exageravam nos tons e nas proporções da arvore, ou da gruta e o presépio, perdia a noção da escala das imagens e, assumia desproporções simpaticamente bizarras. Mas meus olhos de menino não viam desta forma. Naqueles dias o importante era que iam a fazer o presépio e eu queria logo ver o menino Jesus Chegar.
Todos os anos eu e os demais comparsas fazíamos plantão na porta lateral da igreja para acompanhar o movimento dos mordomos e não perdermos nada de vista. Apesar da insistência não nos deixavam entrar de jeito nenhum e lá ficávamos eternos assistentes, a desejar crescer logo, para também podermos ser mordomos e fazer o presépio.
Em um desses anos fizemos uma tentativa no mínimo criativa e cheia de engenho infantil. Pensamos em nos esconder dentro da igreja para assistir a tudo. E se pensamos melhor o fizemos. Um plano simples porem infalível, ficaríamos escondidos no coreto da igreja. Foram horas a fio trancados para poder acompanhar tudo em segredo. Para os que não sabem, esta parte da Igreja fica no fundo e só tem acesso por duas escadarias localizadas uma de cada lado da porta principal que fica ao fundo. Na pratica é como se fosse um primeiro andar, uma plataforma acima do meio da igreja para baixo bem acima da parte onde ficam as mulheres na igreja. Na nossa terra os homens sentam na frente perto do altar mor e do padre, e as mulheres ao fundo. Sempre achei engraçada esta divisão da localização das pessoas por sexo dentro da Igreja. A verdade é que sempre foi assim e até aos dias de hoje ainda tem alguns dos antigos e dos tradicionais que mantém a tradição. O coreto era também o lugar preferido pelos homens mais simples visto que lhes permitia estar na missa sem notarem as roupas mais humildes que usavam.
Entramos na Igreja muitas horas antes dos mordomos chegarem. Não foi tarefa fácil, algumas devotas mulheres, ficaram na Igreja a rezar depois da missa. Nossa tropa na tentativa de ver se elas já tinham saído entrou algumas vezes e disfarçadamente ficávamos a rezar em frente ao altar do senhor dos passos. As mulheres foram ficando alarmadas com tanta devoção infantil, mas, como de repente paramos de aparecer, logo que rezaram foram para suas casas que já era quase hora de fazer o almoço aos maridos e filhos. Estranharam as mães que não aparecemos para almoçar. Já de campana Quando preparados deitados para esperar os mordomos em silencio, ouvimos ao longe o grito certeiro da mãe de um de nós: ó fulano...
Quem nasceu na aldeia sabe bem o poder de comunicação e de alcance dos chamados maternos. Devido à insistência e ao coro de mães que aumentava em numero e nomes chamados no pregão, resolvemos levantar campana e ir almoçar, antes que elas tocassem o sino a rebate por pressentir que algo de terrível pudesse ter nos acontecido.
Voltamos depois do almoço. Em casa todos estranharam a presa com que comi as nabiças com batatas do almoço. Acredito que não foi diferente com os demais. Voltamos rápido, tropa pontual quando em ação. Felizmente a devoção das nossas mulheres vem sempre, depois da obrigação de servir o almoço e matar a fome dos da casa. Com o caminho livre, entramos na igreja. Por sorte só os santos lá estavam e eles não costumam falar com ninguém além de Deus.
Permanecemos imóveis deitados no coreto á espera dos mordomos para ver montar o presépio. Mas quem disse que garotos ficam quietos... Em menos de 15 minutos já nos tinham descoberto e em segundos nos puseram para fora. Já na rua desatamos a brigar uns com os outros para encontrar achar o culpado por nos descobrirem. Mais uma vez á porta a esperar. Pelo menos assim, podíamos espreitar e ver o que acontecia lá dentro sempre que algum mordomo entrava ou saia. Alem do presépio um delicioso perfume de Natal rico de aromas e tons decorava a igreja. Entravam canastras cheias de musgo em camadas, tapetes verdes felpudos com forte cheiro de terra molhada, um cipreste ou pinho ao bater os galhos na porta para entrar espalhava um rastro de resina. uma mistura doce amadeirada rica de sensações chegava da carpintaria do Ti António Bernardo em sacos de estopa cheios de lascas de madeira de olmo, freixo, cerejeira e castanheiro.
Finalmente terminado o presépio podíamos entrar e dar uma olhada. Uma roda irrequieta e barulhenta formava um cordão de espectadores admirados com as novidades. Por segundos o reinava o silencio. Era como se cada um quisesse ver tudo com os olhos antes de abrir a boca para falar para o outro o que tinha mais interesse. Uma gruta ao centro, a burrica a vaca e a manjedoura vazia ao fundo, na Frente a Virgem Maria e São Jose. Um cenário de montes imitava a paisagem com musgo coberto de farinha em alguns lugares. A serragem e lascas de madeira faziam os caminhos parecerem reais. Enfileirados nos montes os pastores com ovelhas virados para a gruta chegavam para o nascimento do menino Jesus que iria nascer pontualmente no fim da missa do galo.
Depois do presépio montado os dias para o natal passavam ligeiros e era fácil ver que andávamos mais comportados. Uma preocupação tomava conta de nós. Uma ameaça velada e repetida vezes sem fim pelos pais e avós. Será que te portaste bem este ano? Olha lá, que não sei não, se o menino Jesus te vai dar presentes. Por falta de vergonha ou medo o certo é que virávamos santos filhos e netos, obedientes pelo menos por alguns dias.
Finalmente na missa do galo era a hora de pedir com mais força os presentes. Com medo e devoção interesseira, isto é, para garantir e não correr risco de ficar sem nenhum presente, punha no cestinho do menino Jesus uma ou duas moedas. Era muito pratica esta devoção infantil e as moeram eram para compensar alguma arte aprontada ao longo do ano e que ainda estivesse por reparar.
Como tinha um plano infalível neste ano passei a missa inquieto. Voltei logo para a cama logo depois de por a bota na lareira e nem quis conversar nem aceitei as provocações que meu pai e irmãs faziam. Queria logo ir dormir. Mas fiquei quieto na cama a espera que todos dormissem e que se fizesse silencio por toda a casa. A uma certa altura senti passos vindo em minha direção. Fechei os olhos e mudei a respiração para convencer que estava realmente a dormir. Meus pais chegaram perto de minha cama, vieram se certificar se eu realmente adormeci, antes de irem na lareira. Sorriram confiantes um para o outro tranqüilos por verem que estava quieto no sono dos justos. Pelo som dos passos no soalho em direção a cozinha, soube que os dois já tinham saído do quarto. E pensei comigo mesmo, se eles vão para a cozinha para ver o menino Jesus eu também posso lá ir a esperar com eles. Levantei e sai do quarto sem fazer barulho. Com os pés calçados com uma meias de lã de ovelha feitas por minha mãe, era impossível escutar o suave roçar de meus pés na taboas frias.
Ao chegar na cozinha, uma cena estranha. Perto das minha botas os meus estavam debruçados com um volume nas mãos. Havia pouca luz, mas ainda assim consegui ver pelo brilho das brasas nas toras ao lume que era uma camionete volskwagem, mesmo sem poder ver nitidamente pois estava escuro e não poderia ver as cores dela eu sabia que era verde e branca, a mesma que eu tinha visto no soto por alguns dias e que também sumiu como os outros presentes. Ao olhar o presente ali na mão deles entendi finalmente a frase que a Tia Variza me tinha dito dias antes: - Luis, o teu menino Jesus já passou aqui para comprar o teu presente.
Voltei para a cama sem que me vissem. No dia seguinte acordei muito mais tarde já era perto da hora do almoço. Não estava feliz e minha boca estava seca e com um gosto ruim. Cheguei calado na cozinha. Ao ver o brinquedo que o menino Jesus me deu, não fiz a mesma festa com que sempre o recebia ninguém entendeu ou percebeu o que aconteceu, nem o desinteresse com o novo presente. Mas, minha mãe imediatamente viu que algo mudara dentro de mim. As mães sempre sabem dessas coisas que ficam espelhadas na cara dos filhos. Felizmente só elas as percebem e entendem.
Finalmente eu sabia que não era o menino Jesus que vinha trazer os brinquedos. Nunca mais o Natal teve o mesmo significado.
Passaram-se os anos. Tenho dois filhos, que agora estão com 16 e 14 anos. Enquanto cresciam e durante os primeiros Natais, pude entender e ver na expressão deles, a mesma magia que o Natal tinha para mim quando criança. Finalmente entendi que mesmo sem o menino Jesus ou Papai Noel, o Natal, tem um sentido muito especial. E que esta magia e simbologia devem ser mantidas e preservadas no coração de nossos filhos. Afinal é na inocência das crianças que o mundo mantém a sua mais pura e intima forma de felicidade e beleza.
Feliz Natal





















Sem comentários:

Enviar um comentário