Autor: Ricardo Jorge Atanásio Pereira
Eu estou um pouco à vontade a falar disto porque vivo com a diferença todos os dias e são muitos os problemas que se põem pela frente no dia a dia.
Não sei bem como as coisas se passam com as pessoas que já nasceram com uma deficiência, mas no meu caso que já tive o acidente aos vinte e cinco anos é muito complicada a adaptação.
É nesta altura que as coisas custam mais, enquanto estamos no hospital são muitas as promessas. A mim por exemplo, foi-me dito que não sairia do hospital sem uma prótese, e o facto é que saí e nunca mais ninguém me falou do assunto e quando o abordei havia sempre qualquer coisa que faltava. Eu sei bem o que era. É o sistema em que se encontra o nosso país, são os padrinhos, quem os tem safasse. Eu nunca compactuei com isso e por isso saí do hospital sem prótese.
E saí para uma nova vida. A vida que aos olhos de muitos é a vida dos coitadinhos, mas eu tenho me recusado a que me vejam assim como um coitadinho. Mas isto visto do meu lado até se torna engraçado ouvir as pessoas a comentar, «faz mais ele com um braço do que muitos com os dois». E é engraçado porque até hoje todas as pessoas a quem eu ouvi este tipo de comentário não fazem mais que eu, e não têm coragem de dizer «faz mais ele com um braço do que eu com os dois». Têm sido muito poucos a admiti-lo.
Também temos o problema da descriminação. Era assim, antes de eu ter tido o acidente pois quem me conhecia estava-me sempre a oferecer trabalho, e depois ninguém me queria a trabalhar. Agora as coisas já estão melhor, mas tive que trabalhar muito para fazer ver às pessoas que o facto de eu só ter um braço não impedia de trabalhar fosse no que fosse.
Mas na população em geral não estranho muito, porque as pessoas não têm a cultura suficiente para lidar com as diferenças dos outros. Mas no que toca ao governo aí sim, já fico muito chocado.
Pois acho que é quem mais descrimina os deficientes, que deveria ser quem mais os apoiasse. Na conversa dos ministros é tudo muito bonito, mas depois não é preciso muito para ver que não é bem assim. Basta ver as barreiras arquitectónicas que existem em todas a nossas cidades e a maior parte delas encontram-se em edifícios públicos como as câmaras municipais, tribunais, nas instituições bancárias e tantos outros edifícios. Isto para as pessoas com deficiência motora, mas se forem deficientes visuais tudo é bem pior.
Não pretendo que tenhamos regalias mas sim que ajudem nas nossas necessidades e haja mais um pouco de bom senso de quem tem poder no nosso país. Um professor do meu filho é invisual e é natural de Abrantes, foi colocado em Mogadouro. Como todos calculamos deve ter sido muito difícil vir dar aulas para uma terra desconhecida, em que ele teve que se adaptar a tudo, às ruas, à escola, e pior de tudo aos alunos. Mas o que é mais aborrecido é que para o ano que vem pode ser colocado em qualquer outra escola do país. Deveriam ter uma política que salvaguardasse estas pessoas e não as tirassem do seu meio.
Quando me referi aos alunos disse, «pior de tudo os alunos», porque estamos no interior, fora dos grandes centros e as nossas crianças, e algumas já não são nenhumas criancinhas, não têm, ou não tiveram educação para lidar com um professor diferente. E sei que quando se encontra sozinho com os alunos eles não se portam muito bem.
Há tantas disciplinas, e não há uma em que se aborde a deficiência para que os jovens começassem a ver as coisas de outra forma.
Por exemplo, eu se for trabalhar para alguma aldeia onde ainda não tenha trabalhado todas as pessoas se admiram e ficam a olhar para mim, e confesso que no princípio me sentia mal, e tinha que dar muitas explicações. Agora já me habituei e não ligo a certos comentários, mas se por acaso estivesse a trabalhar no centro de uma cidade, ninguém se importava se eu tinha só um braço ou tinha os dois. As pessoas são diferentes, e é por isso que eu acho que há diferença na forma que as pessoas vêm as coisas, mediante o meio em que vivem.
Eu tirei a carta de condução de pesados profissional, e desde que vim do hospital tenho conduzido carros pesados, tractores e ceifeiras debulhadoras. Como este ano fiz quarenta anos foi preciso renovar a carta de condução. Fui ao delegado de saúde para tirar um atestado médico e ele não mo passou. Disse que eu tinha que ir a uma junta médica. Isso a mim não me admirou por que eu já estava à espera, o que mais me revoltou foi que na junta médica disseram que eu não podia conduzir mais carros pesados porque não era permitido às pessoas que só têm um braço conduzir veículos pesados. E foi-me tirada assim uma coisa que eu paguei sem sequer me avaliarem, ou marcarem um exame de condução para verem se eu podia ou não conduzir. Quando eu disse ao médico que já conduzo assim á quinze anos ele disse-me, conduzia mas agora deixa de conduzir.
E é aí que está a minha revolta porque desde que tive o acidente nunca ninguém se preocupou se eu estava bem, e se tinha como governar os meus filhos. Sempre paguei os impostos como os outros cidadãos e não houve nenhum funcionário das finanças que me dissesse que eu tinha o direito de não pagar impostos. Durante estes quinze anos tenho pago como os outros, e só agora é que vem um médico dizer que eu não posso conduzir, porque só tenho um braço. Acho que é mesmo uma injustiça, porque mesmo para conduzir um carro ligeiro eu tenho que comprar um carro automático, e não querem saber se eu me adapto bem assim ou não. Medem todos pelo mesmo «razouro». Acredito que nem todas as pessoas se adaptem como eu, por isso acho que me deviam fazer um exame para saber se estava ou não apto para conduzir.
Quando eu tive o acidente, e como houve muita negligência médica e dos bombeiros, o caso foi muito falado nos jornais e na televisão, e uns dias depois de eu ter saído do hospital fui convidado para ir a um programa de televisão para falar do meu caso. O programa era sobre as consequências de viver no interior, e nesse programa estava uma senhora que não sei dizer qual o cargo que ocupava mas pertencia ao governo e disse que desconhecia o meu caso. Disse também que eu podia fazer um certo número de coisas, que eu já não me lembro bem o quê, mas tudo maravilhas para mim. Depois, quando saímos, essa senhora chamou-me de parte e disse que estava sensibilizada com o meu caso, e, que iria ver o que se tinha passado mas que eu não deixasse que me utilizassem como exemplo e que iria entrar em contacto comigo. A verdade é que depois de sair dali nunca mais se lembrou de mim. Afinal era tudo fachada, e quanto ao exemplo, sei que no próximo acidente grave que houve em Mogadouro, veio o helicóptero buscar o sinistrado ao local do acidente e daí em diante tem sido assim sempre, por isso ainda valeu a pena ter servido de exemplo.
Gostava de ter oportunidade de dizer isto a essa tal senhora mas já nem sequer sei quem ela era.
E assim com a ajuda das pessoas mais chegadas e com força de vontade lá se vão passando os dias, e quase não se nota a diferença.
Ricardo Jorge Atanásio Pereira
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